Poemas : 

UM TRISTE MILAGRE ou de como Deus sempre dá um jeito em tudo

 
Tags:  Marcos Loures    Soneto acordelado  
 
UM TRISTE MILAGRE ou de como Deus sempre dá um jeito em tudo

1

Cada vida tem seu preço
E decerto disso eu sei,
Mas bem mais do que mereço
Com tais juros eu paguei,
Se eu só vivo este tropeço
Atropelo qualquer lei,
Mas mudando de endereço
Nem eu mesmo me acharei.
Tanta coisa por viver,
Alegria e fantasias,
E, porém mal posso ver
O cenário enquanto rias
Eu sei bem que sem querer,
Entre tantas agonias,
Uma a mais? Só faz sofrer.


2

Minha história começando
Quando em sua gravidez
Minha mãe sempre rezando,
Tão fiel como tu vês
Depois de um período infando
Sem saber mesmo talvez
Tantos anos já tentando
Até que um dia então se fez
O milagre desejado
E decerto com carinho,
O caminho desenhado
Noutra sorte em doce ninho,
Agora se fez ocupado,
Por pequeno passarinho.

3

Minha mãe adormecida
Entre novenas e velas
Outra sorte percebida
Com a vida já sem celas,
Noutro tempo, agradecida
Pelas noites claras, belas,
Ultrapassa da ferida
Suas rotas e cancelas.
Depois desta sorte imensa
Que decerto se consagre,
Na verdade o que ela pensa
Num momento onde já sagre
Como fosse recompensa
Ou talvez algum milagre.

4

E nasci sem ser disforme,
Mas deveras muito feio,
A minha alma não conforme,
Porém sigo o triste veio,
Quem jamais comigo dorme
Com certeza em tal receio,
Noutro bicho eu me transforme,
Sem fazer sequer rodeio.
Na verdade este coitado
Não faz mal para ninguém,
Todo ser mal desenhado
No final já nada tem,
Vida dando seu recado,
Com deboche e com desdém.

5

Quando em minha adolescência
O que via neste espelho
Já não tendo nem clemência
Não precisa de conselho,
Outra vez a paciência,
Deixa a sorte e eu ajoelho
Vida sendo penitência,
Ninguém meta o seu bedelho.
Na verdade se repares
Com certeza num exame,
Entre tantos vários pares
Não há quem tanto reclame,
Companheiro dos altares?
Corcunda de Notre-Dame.

6

Na verdade vim do avesso,
E se possa até saber
A feiúra em desapreço
Já não deixa nem se ver
Outro rumo enfim mereço?
Mas não posso conceber
Meu caminho eu sempre teço
Nos teares do querer.
Procurei a cirurgia
Algo até que me ajudasse,
Quando viu tal heresia
Outro rumo então se trace,
Doutor nunca operaria,
Só milagre muda a face.

7

Fui crescendo solitário,
Com inveja, me perdoa,
Outro tempo é necessário,
Já não resta nem canoa,
Como ser então corsário,
Tento a vida numa boa,
Mas seguindo itinerário
Tudo sei foi sempre à toa.
Não desisto, e se batalho
Nada mais posso sentir,
Procurando algum atalho,
Outro rumo a perseguir,
Neste mundo atroz e falho,
Acostumado a cair.

8

Desde quando a vida traz
Uma face desolada
Procurar, sendo capaz
De rondar na madrugada,
Na verdade tanto faz,
O final dará em nada,
Erro tanto contumaz,
Satanás fez a morada
No canteiro deste peito
Que jamais esqueceria,
Não que tenha algum defeito,
A verdade em agonia,
Traz um cabra insatisfeito
Infeliz alegoria.

9

Mas o tempo também tem
Esperanças com certeza,
Este mundo já contém
Com carinho e com leveza
A presença de outro alguém
Mesmo pego de surpresa
Que inda possa amar e vem
Carregada em correnteza.
Nos cinqüenta anos de vida
Depois de tantos enganos,
Outra sorte percebida,
Mas entrando pelos canos
No que fosse a preferida
Já mudando agora os planos,
Noutro rumo, decidida
Já não suportava os danos.

10

Mas enfim num beijo dei,
Nem que seja neste rosto,
Dele não me esquecerei,
Coração ficando exposto
Mergulhar onde sonhei
Sem saber qualquer desgosto;
Quando a zona eu procurei
Expulsado como encosto,
Numa noite sem a lua
Vendo a moça na sarjeta
A minha alma ali flutua
Um pecado que cometa
Desta deusa seminua,
Com horror um: “SAI CAPETA”.

11

Minha mãe já bem velhinha
Já passando dos noventa
Delicada uma santinha,
Que decerto me apascenta,
Uma sorte que inda tinha
Nesta vida tão sangrenta
Tantas vezes mais daninha
Feita em fúria e na tormenta,
Ao saber desta tristeza
Outra novena promete
E decerto sobre a mesa
Um banquete se comete,
Sigo contra a correnteza
Feito bola na raquete.

12

Aprendendo a cada dia,
Mas sofrendo hoje calado,
Minha voz em agonia,
Vivo apenas isolado,
No caminho onde se via
O destino mal traçado,
Tanta coisa concebia
Este ser mal acabado,
No final me acostumando,
Como posso? Nem mais sei,
Outro tempo bem mais brando,
Com a morte enfim terei,
Vou pesando em contrabando
Toda a dor; esquecerei.

13

Aproximo de tal forma
Desta sorte sem descanso
E deveras me deforma
Esperança já nem lanço,
Sem poder sequer reforma
Vou restando no balanço
Prejuízo dita a norma
E no fim eu sempre danço.
Uma criatura horrenda
Não consegue ser feliz,
E decerto se desvenda
O mistério onde o desfiz,
Não seria mera lenda?
O que importa? A cicatriz.

14

Como disse e não me esqueço
Minha mãe sendo fiel
Quando viu com tanto apreço
O carinho lá do Céu,
Mas talvez nalgum tropeço
Ou num tombo mais cruel
O que tanto em adereço
Hoje cumpre o seu papel,
Um aborto se esvaindo
Na sangrenta sensação
O que fora outrora lindo,
Não mais tendo solução,
Minha mãe ora pedindo,
Do infinito a proteção.

15

Deus ouvindo a sua filha
Tão leal a vida inteira,
Desenhando nova trilha,
A que possa derradeira,
No aborto em armadilha
Esta vida enfim se esgueira,
Mas a sorte se palmilha
Noutro passo, outra ladeira,
E sabendo da vontade
Da mulher com seus quarenta
Em completa lealdade
Acalmando esta tormenta,
Deste feto, na verdade
O que restou? A placenta...
 
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MARCOSLOURES
 
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