Passa um cão.
É um cão assim, forte, destemido, está sempre pronto ao sexo ou à luta, não demonstra nenhum traço de carência, tem a sadia massa corporal bem distribuída, não é um belo animal, mas tampouco é feio.
Não escapa a um olhar arguto que se trata de um cão sem rumo; vive muito bem sem Deus, não sabe de onde veio, não sabe para onde vai, não sabe por que aqui e não ali, não sabe por que neste tempo e não em outro. E mais: dá ares de não se importar com a metafísica, ou com o absurdo de sua própria existência — vive, nutre-se da própria falta de rumo!
Tem os olhos atentos aos detalhes da rua, mas, como é próprio de um cão, não se comove com tristezas, desgraças não lhe ferem a sensibilidade, endureceu-se na defesa contra os semelhantes; alguns temem a vagueza do seu olhar -— por que será?
E passa o cão.
Vai-se, imbuído em seus passos, curte a desimportância dos olhares, curte a doçura da vida sem rumo. Vai-se, apenas vai-se.
[Um alívio para aqueles a quem sua presença incomoda]
[Penas do Desterro, 02 de março de 2008]