Após uma noite de sonhos inquietantes
Ele ficou na cama e não foi trabalhar.
Havia anos que não faltava ao serviço.
Um leve sorriso brotou naqueles lábios.
Pelas dez da manhã resolveu se levantar.
Não se penteou nem escovou os dentes.
Fitou a esposa adormecida num relapso.
Calçou chinelas, vestiu camiseta e saiu.
Lá fora o céu era de um cinza chuvoso.
Ainda se via vestígios da madrugada
No orvalho que se exibia no relvado.
Carros passavam anônimos e frios.
Não fumava. Comprou cigarros e fumou.
Tossiu. Não sabia tragar. Aos poucos, tragou.
Não bebia. Comprou garrafa de cachaça e bebeu.
Se entorpeceu e, milagrosamente, sorriu.
Sentou-se num banco de praça e sorriu mais.
Sorria como nunca sorrira antes; de forma pura
E transparente, ingênua e quase infantil.
Nas ruas o incessante fluxo dos carros anônimos.
Matou um gato que passava e retirou o couro.
Queria fazer batucada e precisava de tamborim.
Flertou com prostitutas em becos estreitos e estranhos.
Conheceu todos vadios e pelintras da periferia.
Se fez tarde naquela vida azeda e vazia.
Mas após o entardecer a noite fria vem.
Fitou, como nunca ousara, a noite estrelada.
Bebeu mais um gole de cachaça e morreu.
Gyl Ferrys