[color=000000][font=Arial]ASFIXIA
A visão era dantesca, o sentimento que lhe causava sufocante. Não conseguia entender como aquilo poderia estar acontecendo, mas certamente o que via não poderia ser verdadeiro. Entretanto, era impossível deixar de reconhecer que a cena que se passava ante seus olhos era de toda real. Lembrou como chegara aquele lugar, as sensações maviosas que tivera, antes de deparar-se com o que agora presenciava e se horrorizava.
Estava em uma mansão. Nos cômodos primeiros, aos quais chegara após subir uma bela escada atapetada, com corrimão de mármore cor de ébano (contraste entre o frio da pedra e seus sentimentos agitados pela expectativa), encontravam-se lindos móveis em estilo clássico, embora não pudesse precisar de que época seriam. Contudo, percebia que os móveis e a decoração pertenciam à outra era, pois a família que visitava nesta noite de baile era uma das mais tradicionais em Rio Grande, assim como a casa, conhecida como “Sobrado dos Azulejos”, pois seu exterior era totalmente decorado com tal cerâmica especialmente encomendada d’além mar, da cidade portuguesa de Águeda.
Os lustres brilhavam iluminando, com suas velas, candidamente o ambiente. A orquestra já tocava as músicas mais seletas, enquanto casais deslizavam suavemente pelo salão de baile, cujo piso fora tão bem encerado que refletia as sombras que por ele delicadamente dançavam ou apenas caminhavam. Ela perambulou por ali um segundo ou dois, arrastando atrás de si a cauda de seu vestido singelamente branco, como ordenava a moda para as moças de família.
Depois, parou e recostou-se languidamente na parede, naquele estilo muito seu, que todos diziam ser démodé, mas que fazia com que os passantes, homens ou mulheres, sempre lhe lançassem alguns olhares diretos ou indiretos que ela não se atrevia a tentar compreender. Sempre preferia não se importar. Sorriu do pensamento. Erguendo suavemente o rosto, observou tranquilamente o teto, notando a decoração feita de gesso, onde arabescos florais conferiam ao mesmo um aspecto idílico e reconfortante.
Ainda na mesma posição olhou as janelas portuguesas de pé alto, abertas de par em par, o que permitia que a doce brisa que vinha da laguna adentrasse o recinto e tornasse o ambiente refrescante e respirável, apesar do número de pessoas que haviam sido convidadas para o baile e se faziam presentes. Lindas janelas pintadas de branco, combinando belamente com o estilo do casario português e com a decoração externa e interna do mesmo.
Suspirou com tão delicados arranjos decorativos que lhe faziam recordar tempos que não conhecia. Indecifrável incógnita de seu ser, mas ela sabia tudo de épocas idas, por isso o saudosismo que lhe arrancava tais eflúvios do peito. Mas o que mais a estava agitando era a expectativa, a doce expectativa que a valsa iniciada pela orquestra lhe fazia mais ardorosamente ansiar. Haviam lhe contado que hoje, neste baile, ele iria convidá-la para valsar.
Sim, aquele rapaz galante que ela conhecia já há alguns anos e de quem era amiga iria valsar com ela. Se fosse verdade o que lhe contara sua mãe, dizendo que tal informação fora fornecida pela progenitora do seu amigo. Ela já esperava por esse convite há algum tempo, mas ele nunca fora mencionado entre os dois. E ela vivia a esperar. Mas a valsa já estava a terminar e ele ainda não aparecera, embora já o houvesse visto conversando com dois rapazes do outro lado do salão, rindo folgazão, como sempre. Ah! Doce melodia a embalava e quimeras lhe dava asas ao pensar. Aquela figura bela, vista a distância, não queria jamais olvidar.
Nisso, um serviçal lhe falou algo. Ela acordou de seu devaneio e aceitou a taça de ponche ofertada. Endireitou sua postura e resolveu caminhar um pouco pelo salão para ver e, quem sabe, ser vista. Ela elegantemente vagou pelo ambiente e parou a certa distância do amigo e seus companheiros, ficando de lado, como quem diz que não está a observar. Entrementes, percebeu, de soslaio, quando um dos rapazes cochichou algo ao ouvido de seu dileto e riu, no que foi acompanhado. Ela franziu o cenho, mas não se preocupou com o que teriam os amigos conversado. Não era dessas frescuras. Conversou com alguns conhecidos, perambulou outra vez pelo salão e dançou com um moço tímido e péssimo dançarino que lhe pegou desprevenida, fazendo com que ela não pudesse recusar a dança.
Nisso, outra valsa começa a ser entoada. Uma de suas preferidas. Ela estava conversando animadamente com sua mãe e uma amiga quando ele aproxima-se e estende-lhe a mão, perguntando se ela lhe concedia a honra desta dança. Ela baixou os cílios e disse que sim. E os dois, como um par perfeito, deram voltas e mais voltas pelo salão, sendo admirados pelos convidados e familiares. Numa das voltas percebeu uma sombra olhando fixamente para eles, mas não conseguiu distinguir quem era.
Durante a dança, eles trocaram breves palavras, não estavam acostumados a serem observados por tantas pessoas, suas conversas sempre foram mais íntimas quando as famílias se reuniam para algum jantar, Mas estava sendo muito bom dançar com ele, tão confiante em conduzir o par, tão galante, tão calmo. Ela delicadamente perguntou pelo irmão de seu amigo, que raras vezes havia visto e somente de muito longe. Ele era mais velho e estava sempre a viajar a negócios para ajudar o pai de ambos. Diziam que sua reputação era terrível, mas ela não costumava acreditar no que falavam das pessoas que ela não mantinha contato, pois preferia formar sua própria opinião. Mas nunca tivera ensejo de conhecê-lo pessoalmente, pois ele não residia na casa de seus pais, já era independente.
O par respondeu que deveria estar por ai, que ele não era muito afeito a bailes. Nem saberia dizer se ele chegara a tempo de viagem para se fazer presente ao baile. Sempre desligado, ela disse para seu amigo. Que riu e disse que somente se preocupava consigo, que preferia ser assim, não levar muito a sério a vida, que o pai ainda lhe dera mais alguns anos de folga para viver a vida de filho mais novo, embora ele já estivesse começando a freqüentar o escritório para aprender o ofício, pois um dia precisaria trabalhar, cuidar dos negócios e ter família e olhou para ela sorrindo. Ela enrubesceu e baixou os olhos.
Ela comentou que gostava muito de valsar. Ele levantou os ombros e disse que preferia as novas danças: foxtrote, maxixe, gafieira, danças que ele conhecera quando estivera no Rio de Janeiro. Ela comentou que ouvira falar, mas que, em geral, tais estilos ainda não eram aceitos nos salões familiares. Ele olhou para ela com aquele ar debochado que a encantava. Démodé, como sempre, ele retrucou e riu dela. Mas ela já estava acostumada com o apelido que ele inventara para ela. Não se magoou, somente depois, bem depois, é que ela foi entender que ele estava dizendo o quanto ela era desatualizada.
Por fim, a valsa terminou. Ele agradeceu, ela sorriu e se foi em direção a uma das janelas do canto do salão de baile. Não fora o que ela pensara. A dança tinha sido maravilhosa, mas ela não sentira o que esperava. Nada daquela emoção que dizem que as moças sentem quando dançam com o jovem seu predileto. Nada de mãos trêmulas, de coração disparado pela mão viril em sua cintura. Fora tudo muito calmo. Mas ela, não esperava grandes emoções, gostava de mares tranqüilos. Condizia mais com seu coração. No entanto, havia ali, no fundo de tudo, uma certa insatisfação, que ela não sabia exprimir de onde vinha.
Em meio a esses devaneios, um arrepio subiu por seus alvos braços. Sentiu que alguém a observava intensamente. Não sabia dizer como pressentia isso, mas o sentimento era intenso. Virou-se calmamente olhando para os lados de forma tranquila, apesar de sentir o coração a bater frenético no peito. Observou reservadamente as pessoas em redor, mas nenhuma delas lhe dirigia um olhar sequer. Até que seus olhos divisaram uma sombra num dos cantos mais obscurecidos do salão.
Era um homem. Não podia dizer de sua altura, pois ele estava recostado à parede com as pernas cruzadas, onde reluziam botas pretas, nem conseguia discernir suas feições, porque, além de estar postado num lugar onde a luz dos lustres muito pouco iluminava, ele estava com a cabeça, emoldurada por cabelos aparentemente escuros, um pouco abaixada, embora ela pudesse ver que ele a olhava persistentemente. Seus olhos pareciam refulgir tal a intensidade com que o homem a encarava. Parecia que desejava entrar em sua mente e devassar seus pensamentos, numa evidente tentativa de atrai-la até onde estava.
Seu coração disparou, cria ela, de medo. No entanto, não conseguia evitar de continuar olhando aquela exótica figura, embora, para não transparecer isso aos seus conhecidos, mantivesse uma postura relaxada. Entrelaçou as mãos as suas costas e procurou baixar os olhos. Tentava quebrar aquela atração angustiante. Mas o olhar persistente continuava a observar seus menores gestos. Nunca, nunca ela fora tão afrontosamente olhada. Tomou uma resolução.
Levantou o rosto e fixou os olhos penetrantes a frente. Respirou fundo e começou a caminhar tranquilamente em direção ao recanto em que o homem se encontrava. Já não podia evitar de fitar aqueles olhos brilhantes. A atração e repulsa que eles lhe causavam já dominavam sua mente e ela se viu indo devagar e sempre na direção deles, não apenas com medo, mas sentindo um frêmito de curiosidade, de ansiedade... Parecia estar em transe. Por isso, apesar de ansiar chegar aquele recanto onde ele lhe esperava pacientemente, ela caminhava vagarosamente.
Quando estava na metade do caminho e quase já poderia distinguir a face daquele ser tão sombrio, alguém interrompeu seu caminhar e bruscamente lhe tirou do estado hipnótico em que se encontrava. Era sua mãe que queria apresentar-lhe uma de suas antigas amigas que voltara a Rio Grande depois de passar mais de vinte anos na capital gaúcha em função do trabalho do marido. Ela voltou-se para a mulher a sua frente cumprimentou-a e ouviu mal e mal o que ela e sua mãe lhe diziam. Esta perguntou se ela estava se sentindo bem. Respondeu que sim, que nada havia de errado, apenas tinha visto uma amiga com quem gostaria de falar. Sua progenitora disse que ela então fosse atrás de sua amiga que em breve o baile terminaria e elas não poderiam trocar confidências, e riu deixando sua filha sozinha.
Quando ela olhou para o local antes assombrado não encontrou ali a figura que a hipnotizara. Não conseguiu evitar um murmúrio de insatisfação, porque não poderia matar sua curiosidade. No entanto, decidiu ir até o local para ver se conseguia rastrear a sombra outra vez. Agora era questão de honra, precisava afrontá-la para saber porque lhe dirigia aquele olhar tão infame.
Ao postar-se na mesma posição percebeu que não haveria como o homem deixar o lugar sem ser visto, pois havia uma coluna no local a direita que o obrigaria a dar uns dois ou três passos para sair do recanto em que se escondera. O que faria com que ele entrasse na área iluminada pelos candelabros do salão. Ali perto estavam dois casais que conversavam e que ela vislumbrara inconscientemente enquanto estava se dirigindo para aquele lugar, atraída pelos olhos refulgentes, antes de sua mãe quebrar o feitiço que lhe fora imposto. Perguntou a estes se haviam visto o senhor que estava ali recostado. Eles interromperam sua conversa e disseram que não haviam visto nenhuma pessoa naquele canto. Ela insistiu, eles confirmaram e a olharam como se ela estivesse tendo visões.
Talvez esteja, pensou, pediu licença e retornou ao recanto intrigada. Não. Ela não havia se enganado alguém estivera ali, sim. Não era sua imaginação fértil, pois ela sentiu um leve resquício de perfume masculino. “Mas, então, como ele saiu daqui sem ser notado?”, perguntou-se olhando e tocando a coluna a sua direita. Quando virou-se para a esquerda percebeu um pequeno desnível na parede. Aproximou-se ansiosa. Não, não era um desnível. Era uma pequena porta disfarçada que no momento estava levemente entreaberta. “Será?”. Mesmo com medo olhou rapidamente a volta e, como percebeu que ninguém olhava para o local onde estava, descerrou a entrada e adentrou rapidamente o recinto, puxando a porta atrás de si.
Ouviu um clic e percebeu que fizera uma bobagem. A porta havia se trancado e ela não sabia como abri-la. Certamente, deveria ter um mecanismo para isso, mas na quase total escuridão do ambiente não conseguia encontrá-lo. Praguejou mentalmente. “Bem que dizem: a curiosidade matou o gato”. Mas ela não ficaria ali se lastimando, teria que encontrar outra saída e tratou de ir atrás da mesma.
Além disso, ainda estava sob o efeito daqueles olhos, precisava saber quem era aquele homem. Ansiava desesperadamente descobrir porque ele a fitara e porque não havia resistido ao olhar dele. Sim, sendo sincera como era consigo mesma, precisava reconhecer que o que sentira não se tratava apenas de curiosidade e medo. Alguma coisa despertara em seu ser tranqüilo e ela deveria saber o que era.
Olhando em torno do minúsculo quarto em que estava percebeu uma fraquíssima luz infiltrando-se por baixo de uma das paredes. Deveria ser uma porta. Acercou-se do lugar e tateou a parede de cima a abaixo até que encontrou uma maçaneta. Girou-a e a porta abriu-se com um pequeno ranger de dobradiças. Ela cruzou a mesma e deparou-se com um longo corredor praticamente escuro, iluminado por tochas minúsculas sustentadas por figuras de gárgulas horripilantes.
A luz não era suficiente para aclarar o ambiente, apenas para permitir caminhar nele sem esbarrar em nenhuma parede. Ao longe ela ouvia uma música exótica que ainda mais lhe causava arrepios. Contudo, lhe despertavam uma sensação indefinida, como a falar-lhe de coisas que ela desconhecia, entretanto almejava. E essa angústia ia aumentando a medida que ela ia caminhando por aquele corredor que parecia nunca findar. Estacou para observar uma das gárgulas que foram esculpidos na parede. Eram de fato assustadores, com seus dentes pontiagudos, sua língua partida ao meio como de uma serpe. Seus grandes olhos que pareciam mover-se para olhar para quem por eles passassem, dando a impressão para a pessoa que ela estava constantemente sendo observada, devassada.
Ao voltar a caminhar percebeu que não estava sozinha no corredor. Uma estranha moça caminhava ao seu lado, distante alguns metros. Ela receou falar algo para a mesma, pois não queria assustá-la mais do que ela já parecia assustada, pois ela caminhava, como podia perceber ao olhar de soslaio, passo a passo, com a cabeça meio baixa. Vestia um vestido branco, com uma calda que se arrastava atrás dela, fazendo um ciciar que naquele local parecia retumbar como num mausoléu.
De repente, a moça de tez clara e cabelos escuros, presos em um coque bem arranjado como que para uma festa, estacou. O que levou ela a fazer o mesmo, por medo de denunciar a sua presença. “Então, ele atraiu outra além de mim...”, ela pensou um tanto indignada, porque começou a sentir-se assim, meio impressionável, o que sempre achara que não era.
Quando a outra moça recomeçou a andar, ela a imitou. No entanto, percebeu que os mesmos movimentos que ela fazia a outra imitava, numa coreografia inexplicavelmente ritmada. O que uma fazia a outra repetia na mesma cadência e momento. E aquela música ao fundo que estava mexendo com sua cabeça e seu corpo, mais ainda aumentava as sensações estranhas que estava experimentando.
Ao olhar, desta feita diretamente, para a moça que lhe acompanhava notou o quanto eram parecidas. Na realidade, poderia dizer-se que eram gêmeas e até o vestido era o mesmo. As expressões faciais eram idênticas, os gestos iguais.
Chegaram ao final do corredor que estava praticamente em escuridão total, pois a última gárgula ficara para trás a alguns metros. Ela levou a mão ao peito assustada, movimento que a “outra”, que agora a olhava com uma expressão de espanto tão grande quanto a sua, repetiu um segundo depois. Ela decidiu, então, aproximar-se vagarosamente da sua gêmea, mas ao passo que fazia isso a pessoa a sua frente ia como que envelhecendo, seu rosto enrugando-se, seu corpo encurvando-se, suas roupas iam desgastando-se e adquirindo a condição decrépita de um vestuário usado por uma moribunda, até que ao aproximar-se totalmente da figura a sua frente esta a olhava com olhos dolorosamente suplicantes e mexia a boca sem conseguir pronunciar um só som.
Angustiada pela situação do ser a sua frente, ela esticou o braço e ofereceu a mão aquela “sua irmã” para tentar ajudá-la. Quando elas se tocaram suavemente a “outra” desmanchou-se em um amontoado de ossos e poeira circundados pelos farrapos do vestido que até então cobria seu corpo.
Ela abriu a boca para soltar um grito, mas este ficou preso em sua garganta, eis que o par de olhos refulgentes surgiu as suas costas, pousou uma mão em sua boca, e segurando-a pela cintura, arrastou-a para o quarto que se encontrava no fim do corredor que ela percorrera acompanhada pelo que agora era o defunto que jazia ao chão.
Ele encostou-se na porta e a manteve junto a si por alguns minutos, enquanto esperava que o coração dela voltasse a um ritmo mais normal. Ela respirava com certa dificuldade e sentia uma pequena vertigem, mas conseguiu perceber que este novo recinto ainda era bastante escuro, mas levemente mais iluminado que os demais em que andara até chegar ali. Também era daí que vinha aquela música estranha, que mexia com suas emoções, mesmo que ela não o desejasse.
Em um dos cantos do cômodo havia uma mesa, com duas taças e uma garrafa de vinho tinto já aberta. Quem a estava mantendo prisioneira havia tomado ao menos um pouco do seu conteúdo, pois exalava o doce aroma da bebida. Mais nenhum móvel decorava o recinto, exceto um tapete e várias almofadas dispostas no chão. Ela sentiu a respiração compassada dele perto de seu ouvido. Então, ele sussurrou:
“Vou retirar a mão de sua boca. Peço-te que não grites.” Ela assentiu com a cabeça. Ao que ele baixou o braço e pousou a mão em sua cintura, onde a outra já estava. “Já te acalmaste?”
“Sim”, ela murmurou, perguntando incontinenti, um tanto furiosa. Por que me prendes aqui?”
“Não te prendo. Vieste porque desejasse me seguir”. Ele respondeu soltando-a e dirigindo-se até a mesa. “Eu não te obriguei”. E riu zombeteiro. “Não resististe a curiosidade, como eu supunha que aconteceria, apesar de toda pose que exibes. Não, teus desejos são superiores ao teu comedimento”.
“O que aconteceu ali fora? Quem era aquela mulher?”
“Não havia nenhuma outra mulher. Aquilo era um espelho”.
“Impossível. Ela simplesmente desmanchou-se em ossos quando tentei ajudá-la.”
“Tão arrogantemente certa sobre o que viu!!! Tua mente está a pregar peças, moça. Somente isto.”
“Por que ficaste me observando na festa? Por que me trouxeste aqui?”
“Olhei por que quis e foi a senhorita que não resistiu e veio atrás de mim. Aliás, começou a vir quando ainda estávamos no salão. Eu sei o que sentes por ele, mas não é ele que almejas. Ele não é o que parece. Por isso estás aqui, descobriste isso hoje e vieste atrás do que tua mente realmente quer”.
“O senhor não me conhece”.
“Aceite uma taça de vinho, por favor”.
“Não”. Ela respondeu firme.
“Meia taça, então, não vai lhe fazer dano, prometo”. Ele disse desafiador. E ela aceitou. Já havia bebido antes, com seus pais, em sua casa. Sabia que não iria perder-se por meia taça de vinho tinto. Provou o conteúdo de sua taça. A bebida desceu levemente por sua garganta. Era maravilhoso, extasiante. Bebeu o restante.
“Gostas de valsar, senhorita?”. Ele fez um gesto com a mão antes que ela falasse algo. “Eu mesmo respondo: sim e, pelo visto muito, e danças muito bem. Ele valsa galantemente, mas não tão bem quanto outros podem valsar. Pois então. Vou mostrar o que desejas realmente.” E ele pos a valsa predileta dela a tocar.
“Não desejo valsar”. Ela falou de modo enfático.
“Pois vais, sim.” Ele a tomou nos braços e começou lentamente a arrastá-la pelo quarto, olhando-a intensa e ardentemente, até que, sem saber como, ela começou a acompanhá-lo, deixando-se envolver por aquela música estranha que tomava conta de seu corpo e a conduzia contra a vontade.
Ele aumentou o ritmo do passo, apertando-a ainda mais contra si. E ela perdeu-se naquele olhar profundamente escuro e audacioso, que parecia adentrar sua mente e descobrir todos os seus segredos. Começou a sentir que o ar lhe faltava, devido ao ritmo da dança e as sensações que lhe despertavam aquele lugar estranho e essa valsa impetuosa.
A música findou e ele bruscamente parou. Murmurando com a face próxima a dela: “Foste tu que vieste até mim. A mulher...a mulher no espelho será teu futuro se não me deres o que quero e não tiveres o que tanto anseias.”
Quando ele estava para beijá-la e tragá-la em emoções tão intensas, ela virou o rosto e o beijo roçou o seu ombro, marcando a pele como o fogo, enquanto uma das alças do vestido deslizava por seu braço. Ela já não ousava respirar e então...
Então ela acordou do pesadelo-sonho que estava tendo, sentando-se rapidamente na cama, angustiadamente sufocando com a imagem sua se desfazendo naquele espelho e com a sensação dos lábios em seu ombro. Reprimiu qualquer manifestação das emoções que sentira com a ilusão que surgira enquanto dormia. Recostou-se nos travesseiro e pousou calidamente a mão em sua testa.
Ah! Bendita hora que aceitara dançar com aquele par de olhos escuros no baile realizado no Sobrado dos Azulejos. De ora em diante, os olhos fulgurantes do irmão de seu amigo iriam persegui-la indefinidamente.
Decidiu nunca mais valsar.
(25/01/2011)