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ADEUS!

 
ADEUS!

Quase que se esqueceram de mim, já estou habituado. Tu foste a notícia e eu sei que não querias. Eles martelaram insistentemente dizendo que morreste só, sem ninguém, vertendo palavras sobre palavras por sobre uma situação que eles jamais entenderão. Preocuparam-se pela delonga – e chamaram-lhe incúria – por demorarem tanto tempo a encontrar-nos. Bom, verdadeiramente, a encontrar-te, pois a mim quase se não referiram, e sem grande alarido, nem surpresa.

Eles querem lá saber dos anos que vivemos juntos, dos carinhos que trocámos, da atenção que prodigalizávamos constantemente nos mais pequenos gestos. Nunca tive grandes sonhos, nem tu podias tê-los. Tínhamo-nos um ao outro; passeávamos nas ruas naquelas horas em que ainda estavam acordadas. Até ao dia em que com mais vivacidade do que era habitual, me chamaste para o sofá e me afagaste ternamente, e perguntaste se me recordava de quando e como nos havíamos conhecido…e sem me dares ocasião de responder, prosseguiste ininterruptamente, como se quisesses fazer um ajuste de contas contigo própria, mas sempre naquele tom meigo que sempre usavas.

Depois calaste-te, eu pensei que era o cochilar do costume de um corpo fatigado em frente da televisão…afaguei-te à minha maneira, de mansinho, demoradamente. Tu mantinhas-te no teu sono tranquilo. Sim... depois percebi que desta vez era diferente, o teu ronronar diminuíra até cessar, por completo. A quentura do teu corpo já não era a mesma. Eu sabia o que estava a acontecer, nada que não estivéssemos os dois à espera, algum dia haveria de ser. Apesar de saber inevitável, por momentos não soube o que fazer, senão lamber-te quase em desespero, pois, na verdade, nunca estamos inteiramente preparados. Depois, mais calmo, despedi-me com um latido quase inaudível para não perturbar os vizinhos, enrosquei-me bem juntinho a ti, e chamei o sono que veio surpreender-me em pleno devaneio de quando foras buscar-me ao canil municipal, livrando-me assim de uma despedida antecipada, injusta, sem ternura…Sim, foi aí que começámos a nossa vida!

(nome ininteligível)

(P.S. esta carta chegou-me recentemente quando os media difundiram à saciedade o achamento das ossadas de uma velha senhora e do seu cão vários anos depois da seu trágico desfecho, algures num bairro da grande Lisboa, enfatizando a situação da solidão nas sociedades contemporâneas. Não cheguei a apurar se a epístola teria tido algo a ver com este acontecimento…)

Arfemo

 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 20/02/2011 21:07  Atualizado: 20/02/2011 21:07
 Re: ADEUS!
Fiquei emocionada com o texto...a nossa sociedade hoje em dia forja o individualismo, a solidão ou abandono...um animal passa a ser uma ótima companhia para muitos... Obrigado por partilhar.
Abraços, ALICE

Enviado por Tópico
GeMuniz
Publicado: 20/02/2011 21:14  Atualizado: 20/02/2011 21:16
Membro de honra
Usuário desde: 10/08/2010
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 Re: ADEUS!
Olá Arlindo. Ainda não o tinha lido em prosa. Pois gostei de ler esse texto denso, reflexivo e triste, porém muito real. Essa realidade que choca, pois, no fundo, não queremos enxergar o quanto isso é comum nos dias de hoje.

Um abraço


Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 20/02/2011 21:14  Atualizado: 20/02/2011 21:14
Colaborador
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 Re: ADEUS! p/nonnalice
é, esta carta-crónica vai um pouco contra a corrente do interessse dos media portugueses em que a recente descobera do cadáver de uma senhora idosa e do deu cão, oito anos depois. do cão que não alertou a vizinhança e se deixou morrer, poucos falaram...grato Alice por lhe ter dado atenção!bj

Enviado por Tópico
Tânia Mara Camargo
Publicado: 20/02/2011 21:40  Atualizado: 20/02/2011 21:40
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Mensagens: 4246
 Re: ADEUS!
há tantas coisas nesse mundo
acontecimentos que nos emocionam
como o caso citado, é de doer na alma,
e muitos passam por cima disso como
se nada fosse.
Há que se ter sensibilidade, amor
humanitário, como demonstras ao
postar a carta.
parabéns


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 20/02/2011 23:20  Atualizado: 20/02/2011 23:20
 Re: ADEUS!
Esta carta escorreita, enxuta, sem palavras a mais ou a menos, é uma ode à ternura.
(De uma forma bem menos terna, deixei em tempos neste sítio um quase-poema a que dei o nome de Centro de Acolhimento, e que aborda uma outra variedade dos desabrigados da sorte, quando velhos).

DM


Enviado por Tópico
DianaBalis
Publicado: 20/02/2011 23:42  Atualizado: 20/02/2011 23:42
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 Re: ADEUS!
Uma carta de sabedoria, entre seres naturalmente sensatos, perduram sentimentos inabaláveis...Boa semana, agradeço essa melancolia solidária;bjs

Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 21/02/2011 00:09  Atualizado: 21/02/2011 00:09
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 Re: ADEUS!
Por muitas que sejam as considerações feitas à riqueza do conteúdo deste texto, por que ele diz respeito a uma questão social que toca o mais distraído, não queria eu eximir-me, estimado poeta de o aplaudir pela sua proverbial e oportuna presença nas questões que tem que ver com o mais delicado da nossa natureza.
Tudo o que se diga no sentido de travar o homem no leviano resvalar para a larvar indiferença para com o drama alheio, nunca é demais.

Um abraço
Antonius

Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 21/02/2011 12:58  Atualizado: 21/02/2011 12:58
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 Re: ADEUS!
Me atingiu em cheio esse texto. Me levou a história verídica de um cão, que pressentiu a morte do dono, e passou 8 anos esperando sua volta em uma estação de trem. Hoje, existe uma
estátua do cão, nessa mesma estação. Isso me leva a ter saudades desse mesmo sentimento entre os humanos...bjs

Enviado por Tópico
AnaMartins
Publicado: 28/02/2011 02:23  Atualizado: 28/02/2011 02:23
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 Re: ADEUS!
Só mesmo o Arlindo com a sua tenacidade e perseverança para dar luz a este tópico sempre tão igorados - como se fôssemos uma ilha!

Beijo e a admiração do costume!
Ana

Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 15/05/2011 08:02  Atualizado: 15/05/2011 08:02
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 Re: ADEUS!
Arlindo,
Infelizmente foi preciso que os media noticiassem este caso desta senhora para depois a polícia, os famliares e a vizinhança alertarem para tantos outros que já desconfiavam teriam desfecho igual.
As leis são o que são e o conceito de família e de amizade e fraternidade tem vindo a decaír abruptamente.
Tudo isto é fruto de uma sociedade desprovida de valores e sentimentos.
Beijo
Nanda