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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
hoje ando por aqui. nem compreendo bem o que é andar por aqui. talvez sentir o movimento das marés. ouvir as gaivotas a falar com o vento. recordar o calor dos verões que me fizeram crescer. lembrar o homem fada que vendia língua da sogra – vive dentro de mim uma praia azul. enorme. com baldinhos. com forminhas. com ancinhos. com grandes castelos de areia – nos meus castelos. aqueles que eram feitos por mãos que ainda não conheciam o pecado. só havia o bem – naquela praia todos os dias nascia um novo castelo – eu era o rei. a meu lado os meus súbditos: estrelas-do-mar. búzios. lapas. mexilhões. o sargaço e aquele cheiro a iodo que me faz correr vida adentro – o mar ia e vinha. vaga atrás de vaga. dia atrás de dia e os castelos de sonhos cresciam e morriam com o sol a cair no mar – pela manhã. no areal. o prenúncio de uma vida: ruínas – mas os meus súbditos ali estavam. fiéis. nunca me abandonaram. a cada novo dia de sol. um novo castelo. com uma nova esperança – ainda hoje. sempre que vou à praia ali estão os meus amigos. mas já não sou capaz de construir castelos. não os quero desiludir mais. sei que vão ruir ao cair da noite. pela manhã não terei a mesma força para construir outros como no passado – não sou capaz. já não sou capaz – o meu mundo já não é igual. o sol não volta a cair no mar – agora sou peregrino. as mãos outrora brancas agora cinzentas. sem alegria. sem vida. sem iodo. respiram para viver. encurtam caminho com a morte – um dia. depois de outro verão. as marés não mais subirão até ao meu areal. não mais voltarão a destruir os meus castelos. estarei então finalmente frente a frente com o tudo e o nada – o meu último verão – eu e os meus castelos seremos então para sempre uma história de fadas. enterrados num mundo só nosso. mágico. viveremos para sempre. onde agora vivem aqueles que um dia me ajudaram a fazer verdadeiros castelos – hoje ando por aqui. este verão não me larga. a água é tão azul. encontro ainda as barracas enterradas no areal. guardavam tanta gente. gente feliz. famílias de pais cansados pelo trabalho – o meu pai falava. falava sempre. era enorme. havia dias que tapava o sol. as nuvens. e até o horizonte acabava morto a seus pés. nunca vi nenhuma onda maior do que ele. era mesmo grande. sabia que a vida era feita de palavras. palavras abertas. livres. doces. doces como mel. sempre enfeitadas de gestos para rostos passageiros – a minha mãe. sentada na areia. ouvia o sol. olhava o futuro com orgulho na face – sempre teve medo dos inesperados males de um mundo. feito de trabalho que não queria para os seus – o futuro tão perto e tão longe – a saudade é cada vez mais cruel. deve ser por saber a morte cada dia mais perto. mais negra – a carne. mais dia menos dia. não vai aguentar. levará definitivamente outra metade de mim – o homem fada que vende língua da sogra grita. grita pelo meu nome. enquanto as pernas revolvem a areia que ainda não chegou ao mar – nesta areia branca. pura como estas memórias. enterrei os meus sonhos – hoje ando por aqui. recordo quem fui e tudo o que sou. como falava. com ele aprendi a falar. como sorria. com ele aprendi a sorrir. como sonhava. com ele aprendi a sonhar. como amava. com ele aprendi a amar. com era amigo. foi com ele que aprendi a ser pai – hoje ando por aqui. penso. porque é que o mundo não anda para trás. devia andar. tenho tantas saudades do homem fada que vendia língua da sogra.