"quando o inverno chegar
eu quero estar junto a ti
pode o outono voltar
eu quero estar junto a ti
é primavera..."
Vinte e sete de setembro de 1969
Sob o olhar vigilante da mãe,Mônica ajusta a grinalda em frente ao espelho. Fortes batidas na porta do quarto denunciam que é chegada a hora. O pai está impaciente.
Trinta minutos depois a limunise chega à majestosa igreja. A noiva,com o semblante carregado,salta do carro acompanhada pelo séquito de daminhas. Sobe os degraus com alguma dificuldade segurando tantos panos que pendem do vestido branco de princesa. Antes de entrar,porém,algo a impele a olhar para trás.
Eduardo está do outro lado da rua.
Três semanas antes.
Gritos explodem dentro do quarto do casal. O homem esmurrava as paredes. Os empregados atônitos,emudeciam,tentanto ouvir cada detalhe:
- Como você pôde deixar isto acontecer??
- A culpa é minha?
- Você é a mãe!! Eu to na rua!! Você é a mãe!!
- Ela nunca fez nada errado...sempre foi ajuizada...eu nunca precisei...
- Vigiar!!! Que merda de mãe você é??
- A culpa não é minha!! Aquele desgraçado que apareceu na vida dela! Ele é o culpado!
- Quem é esse filho da puta?? Quem é??
- Eu não sei direito...é um rapaz que ela conheceu na faculdade...
acho que ele é professor...
- Comunista?? Comunista!!!
O escândalo já se espalhara por toda a vizinhança, pelo círculo de amigos,pela parentada. A filha única da família quatrocentona teminara o noivado às vésperas do casamento,com a cabeça virada por um pobretão que já havia,até,sido preso. Terrorista,diziam. Uma desgraça se abatera sobre todos!
Em seu quarto,encolhida na cama,Mônica só pensava em Eduardo. Tentava não ouvir o barulho que vinha do outro lado do corredor. Relembrava o dia em que o conheceu,o primeiro beijo,os amassos no banco de trás do velho fusca vermelho. E como fizeram amor no apartamento da Berta.Perdeu a virgindade às três da madrugada, numa minúscula varanda,sob um luar impossível. Como poderia se casar com Augusto? Jamais sentira por ele o que sentiu pelo outro! Com Eduardo descobriu o que era amor, o que era tesão,cumplicidade,intimidade. Descobriu o que era um homem.E gostou. E tudo isso em apenas algumas semanas enquanto sua morna relação com o noivo já durava três anos.
O pai abriu a porta do quarto sem bater:
- Eu vou falar com Augusto e com o pai dele. Vou resolver essa porcariada que você aprontou!! Pode esquecer aquele comunista desgraçado! Eu mando matar o desgraçado! Ta entendendo?? Mando matar!!
Por vinte anos Mônica foi uma esposa exemplar. Manteve uma casa impecável,uma família impecável. Foi traída,desprezada,
humilhada. Afinal,Augusto fez o grande favor de se casar com uma perdida! E assim viveram até o dia em que ele sofreu um severo ataque cardíaco,no apartamento que mantinha para a amante da vez.
Ficou,então,com tanto medo de morrer que deixou de viver. Tornou-se um inútil,um morto-vivo. Foi à falência.Ficaram pobres e,consequentemente,sozinhos. Mônica mantinha-se viva graças ao filho que,embora,vivesse em outro país mantinha,mesmo à distância,
uma relação amorosa com a mãe. E também graças às lembranças daquelas poucas semanas em que um furacão de belos olhos azuis,chamado Eduardo,passou pela sua vida.
Vinte e sete de setembro de 2009.
Dia de sacolão no supermercado. Frutas e legumes mais baratos. Mônica passa seu batom cor de boca. Olha-se no espelho para pôr os brincos. Aos sessenta anos ainda é uma mulher bonita. Os belos seios ainda ajudam a moldar uma bela figura. Exalava dignidade e uma sensual elegância. Satisfeita consigo mesma despediu-se do marido que cochilava jogado no sofá.Teve a impressão de que ele babava...
Na banca de laranjas escolhia,com calma,as mais bonitas. Um homem postou-se à sua frente,do outro lado da banca. Olhou,por impulso. Baixou a cabeça e olhou de novo. Sessentão, grisalho. Regata e bermudão. Tatuagem de dragão no braço? Ela teve vontade de rir. Não dele. Mas do seu próprio interesse. Não sentia esse tipo de coisa há uns...quarenta anos! Ele também escolhia laranjas e cantarolava Born to be wild...
Ela não acreditou no que ia fazer mas fez:
- As laranjas estão bonitas,não? - ele,distraído,não respondeu.
Frustrada,sentiu o rosto queimar de vergonha e teve vontade de se enterrar no monte de laranjas. Ele olhou para os lados:
- Você falou comigo? - ela levantou a cabeça e viu,melhor,o seu rosto. Ele a olhava francamente. Aquele azul...aquele azul....
Sentiu um tremor, um frio na barriga. Ele olhou pra cima,sorrindo:
- Caramba,Mônica!! Será que eu mudei tanto assim??
"...trago esta rosa,para te dar"
" Primavera"
Composição de Cassiano e Silvio Rochael.
Na voz do inesquecível TIM MAIA.