Já conformado, marcado pelo tempo, esquecido de si mesmo, ali morava ele dentro da caixa, sem a memória real do seu valor. Ali ouvia histórias da vida, lembrava momentos, carregava no seu cheiro de guardado segredos e confissões, não havia nele novidades para contar; a vida o fez assim jogado, esquecido de sonhar... Foi já tão amado, tanto amou, tanto viveu... Agora seu universo era apenas um armário, portas que se abriam, pessoas que nem o olhavam, por ele passavam sem lhe tocar... Seria ingratidão assim pensar que foi esquecido? Ou, o seu valor mudara? e agora tantas outras coisas aconteciam... O que o fazia ali está esquecido, descartado? Foi companheiro de sonhos, deu tanta festa, doou muita euforia, via-se esquecido agora, dizia-se amarrotado, sem graça, um leve desbotar já anunciava que tudo era menos sem cor. Quem sabe no vai-e-vem das horas alguém poderia dele lembrar... Pura ilusão; descontentamento, e então... Lamentos, recordação, muita saudade. Saudade da felicidade de crer no sonho, de ir em busca do novo acontecimento, e assim olhar na cara da covardia, sair do seu lugar seguro, colocar-se à prova do desconhecido... É preciso recomeçar, pensava. Com muito medo quase morria no armário, na dor, todo perdido; vivia sem respirar... Até, que numa bela manhã, levado pelo descuido do seu destino, viu a fresta que o levaria para a sua liberdade, num gesto brusco e magoado sai da caixa; olhou em volta de si, há vida.
La fora, tudo é diferente... Mas nada é tão mudado que eu não possa retomar a minha já “suposta” (perdida felicidade). Fora do armário o dia tem outro cheiro, o Sol brilha e dá sentido à minha respiração, pulsa, remete, alerta-me a alma fraca quase doente... Olhos atentos, nas mãos os sonhos, uma vontade imensa de sorrir, alguém, por favor, conte-lhe uma boa piada, faça-o voltar a sorrir, pois é urgente ter vida, perder esta poeira que o tempo deu-lhe como uma camada protetora e falsa. Esteve tanto tempo renegado, renegando-se, perdendo-se da magnífica palavra: “LIBERDADE”, liberdade sim! De ver-se vivo, de ir ou ficar, e apenas por querer ser o que é, sem dar explicação, com a cabeça sobre os ombros, sair do esconderijo, as ervas daninhas dos seus caminhos já tão batidos do seu tempo... Um tempo que jogou fora com tamanha ignorância da tal felicidade (felicidade? Que palavra é esta que já não me é pão?) Pensava , chorava, gemia na sua nova busca de viver. Nascera agora, passava pelo fogo da desilusão, para chegar ao frescor da aceitação do real (Realidade), palavra que a alguns assusta, pois ela trás consigo a pura flor, o direito de ser como ela se apresenta, sem pedir licença instala-se na vida , que por vezes lutamos em rejeitar.
Assim, e vestido de uma tentativa de reviver, saiu, abriu a porta, pegou o seu antigo jeans, deu-lhe umas batidas de saudação, pediu-lhe desculpas pelo abandono, sorriu para o velho amigo, e disse-lhe com um sorriso novo: “agora virás mais uma vez comigo, já não estaremos sós, direi e ouvirás, calarei e entenderás, pois nesta vida quem não precisa ter fora do armário um velho casaco jeans?” Limpou-lhe os cantos, arrumou, cheirou, vestiu e saiu buscando os novos caminhos. Descobriu portas, janelas, e reviu tantos rumos... Foi correr de encontro a tudo que deixou no desencontro, jogou sobre os cansados ombros o velho companheiro e partiu, agora consciente da inércia em que vivera, olha-se no espelho, põe na mochila a coragem e segue com a força e a certeza de que é preciso trilhar esta estrada: VIDA, sem olhar para trás, sentir-se bem-aventurado e seguir na direção do horizonte que o espera.
(Ednar Andrade).