Ternurinha acordou pela manhã como sempre à mesma hora, naquela hora em que o galo sempre canta, naquele dia o cantar do galo era diferente e ela estranhou. Não sabia muito bem onde habitava tão estranho galo, numa cidade por onde só se ouvia o barulho dos carros e por onde as nuvens de poluição chegavam a tapar o próprio tempo. Naquele dia pensou que o galo poderia estar doente, resolveu caminhar à sua procura. Ternurinha era tão pequenina que passava em todo o lado com uma enorme facilidade, pequenina esguia e magricela de olhos muito vivaços e uma enorme vontade de ver o mundo, pensava que conseguia chegar a todo o lado, sozinha, não tinha medo de nada ou então o medo nunca se cruzara com ela de verdade. Ao encontrar uma porta aberta, saiu sem dizer nada a ninguém, meteu-se ao caminho com um ar muito satisfeito e corado, aquela epiderme branca deixava passar umas rosetas que a embelezavam, rosetas de quem nunca viu o sol, o seu tamanho não a deixava chegar à altura do parapeito da janela, nos poucos dias em que o sol espreitava por entre a poluição. Galgou por entre um muro, ágil como só ela, ficou de boca aberta a ver passar um comboio que quase a derrubava com o vento, acabou por adormecer encostada a uma árvore que se encontrava num pequeno jardim, ali adormeceu ouvindo os sons da noite que a aguardavam. Ao acordar naquela sua primeira noite ao relento com som do galo, a menina desatou a correr na sua direcção, o som vinha de perto...cada vez mais perto...e mais...até que ela avistou um pequeno campo e nele uma casa de madeira velha (barracão), encostada, uma cama antiga de ferro desmontada e muitos latões velhos, pequenas alfaces e couves, uma pequena horta no meio da cidade.
De olhos muito abertos avista um galo enorme que esvoaça na sua direcção, levantando aquela poeirada toda que a deixou num estado muito triste e assustado, ela correu como nunca tinha pensado em correr até ali e como se não bastasse entra em desequilíbrio e acaba por cair e fazer um grande galo na cabeça, naquele preciso momento começa a cair uma caqueirada de água que a deixa com os olhos iguais às poças da rua, o medo tinha entrado naquele coração tão pequenino a disparar numa velocidade alucinante pelo seu corpo encharcado. Parou, enfrente a uma grande poça e ficou ali parada a ver-se ao espelho, duas na poça cara a cara com o medo, começou a conversar com a poça e a pensar se ela a escutava, não ouviu resposta, ficou triste. Caminhou perdida de galo na cabeça, o único galo que a acompanhava perdida de casa naquela tarde triste e enevoada de frio. Ternurinha cresceu naquela cidade fria, sonhando com o campo e a praia que lhe mostravam nas histórias e que apareciam nas imagens das revistas e da televisão, mas o medo apoderou-se dela numa brincadeira de criança que se apoderou do seu subconsciente para o resto da sua vida, aqueles braços de mendigo desesperado com vestes rasgadas que ao querer ajudar aquela menina perdida, lhe cravaram olhos de terror naquela tarde de inverno que a seguiram para o resto da sua vida por entre aquelas ruas que lhe tiraram a voz. Nunca ninguém ficou a saber o porquê daquela perda, o mendigo ao reconhecer a menina, mas com muito medo de alguém poder pensar que lhe tinha feito mal, não disse em que local a tinha encontrado, deixou-a sentada num banco ali perto à sua casa. Nunca ninguém ficou a saber a razão de tamanha melancolia que se cravava naqueles tristes olhos e numa boca muda. Assim se fechou nas portas do medo para o resto da sua vida…
Hoje ternurinha é um caso de medicina, os pais não sabem o que lhe hão-de fazer…talvez pagar uma viagem para Londres à procura de um bom médico?
Cristina Pinheiro Moita /Mim/