O que de melhor recordo daquele dia foi exactamente o que me deixou extenuado. Do que me lembro pior, é do magnífico dia que estava, e de como esse foi um dos dois factores preponderantes no meu radioso acordar. O outro foi a enorme vontade de escrever.
E ela estava ali: radiosa, convidativa e com um enorme poder de sedução. A mítica folha em branco. E mítica porque não creio existir nenhuma folha em branco. Mesmo quando nenhuma marca lhe fizemos, um simples traço insignificante, tudo o que na nossa cabeça escrevemos enquanto a olhamos, já lhe pertence. Bom, mas isto são devaneios. O que importa, para o caso, é que aquela parecia realmente em branco e atraiu-me como o mais forte dos ímanes.
Comecei a desenhar letras e escrevi uma, duas, três frases. Li-as e, de imediato, as risquei. Continuei a escrever e, desta vez, saíram de rajada dez frases. Li-as, reli-as e tornei a riscá-las. Não estava fácil, mas não desanimei: tirei um café, coloquei uma fatia de pão na torradeira e sentei-me junto à janela tentando sugar inspiração ao lindo dia que a mesma me mostrava. O disparo da torradeira acordou-me para a realidade: queimadas. Fiquei-me pelo café enquanto olhava desafiadoramente para a folha. Sim, o café acalma-me, ao contrário do que faz aos outros; por isso é que escrevo, ou pelo menos tento, mas com folhas destas nem sempre é fácil. Mais calmo regressei à escrita, e depois de mais três ou quatro tentativas falhadas, compreendi que, se queria levar alguma coisa daquela folha, teria de ser através de diálogo. Então, fiz-lhe uma pergunta seguida de uma recomendação:
- Porque não me deixas trabalhar? Será mais fácil para os dois se cooperares.
- Não, será mais fácil para ti, mas, para mim, não – respondeu ela rispidamente.
- E não será mais fácil para ti, porquê? Então não é essa a tua função?
- E porque é que tenho que desempenhar a minha função quando tu queres e não quando eu quero?
Aquela pergunta desconcertou-me. Não só tinha uma folha teimosa, como também parecia presidir ao sindicato das folhas em branco. “Isto só vai lá com autoridade.”, pensei; e nós pensamos que a autoridade parece ser o único recurso existente nestas situações.
- Cara folha. Vou exercer o meu poder autoritário sobre a tua inexistente vontade em colaborar, e verás como tudo ficará resolvido num piscar de olhos.
Recomecei a escrever e quando dei por mim era um louco a debater-me com uma folha. Uma simples folha. Tentava segurá-la com uma mão (a esquerda) enquanto com a outra escrevia. Escrever digo eu, porque o que eu fazia não era mais que uns míseros rabiscos sem qualquer significado. E como era difícil fazê-los!
Levantei as duas mãos da folha e a maldita sossegou.
- Então, estás mais calma? Já percebi que não tens vontade de cooperar mas também não precisas ser agressiva – disse-lhe eu enquanto me via, o cabelo provavelmente em desalinho, a falar com uma folha. Louco como nunca.
- Qual é o teu problema, então? – Perguntei-lhe num último esforço para levar as coisas a bem.
- É só uma questão de afirmação. Não tenho que obedecer às tuas vontades. A ti apetece-te escrever, a mim não me apetece ser escrita, é simples.
- Mas onde é que já se viu uma folha não lhe apetecer ser escrita? Porque é que existem então se não para serem escritas?
- Depende: se fores uma criança, servimos para ser amachucadas e envoltas em fita adesiva até formarmos uma bola de futebol; se fores um vendedor de castanhas e o dia te estiver a correr bem ao ponto de gastares todas as folhas de jornal, servimos como depósito de castanhas; no caso de seres uma pessoa habilidosa manualmente, podes usar-me para criares barcos, aviões, cisnes, um sem número de objectos que nem te passa pela cabeça. – Respondeu a folha muito orgulhosa das funções a que se podia prestar.
- Muito bem, mas eu quero-te para te escrever e não para fazer nenhuma dessas coisas.
- Então e vocês, Homens, para que é que servem?
- Servimos para muitas coisas que, na esmagadora maioria das vezes, só dependem da nossa vontade. – Respondi prontamente.
- Com essa resposta só me estás a dar razão. Se existes para fazeres o que a tua vontade manda, porque não hei-de eu ter esse direito?
- Porque tu és só uma folha, caramba! Não era suposto teres vontades. Devias existir, única e exclusivamente, para que eu te escrevesse, e, no final, sermos felizes.
- A tua felicidade pode não ser a minha felicidade. Nós temos uma relação. Uma relação a dois. A felicidade de um depende da do outro. Já pensaste que me podes estar a fazer infeliz? Já pensaste que aquilo que escreves pode não me agradar? Tudo bem, foste tu que me escolheste. Podia ter calhado ao Lobo Antunes, ao Saramago, ou quem sabe ao Tolstoi, o escritor dos escritores, mas tu és capaz de melhor. Esforça-te e serei a tua melhor amiga.
Fiquei atónito com tamanha sinceridade. Afinal, a minha folha era a pior crítica que poderia imaginar. A vida tinha-me ensinado que era a folha quem servia o escritor e agora teria que ser eu a servir o critério da folha? E que critério! Lobo Antunes, Saramago e, imagine-se, Tolstoi.
Decididamente aquele não era um dia para escrever. Durante todo o resto do dia, não voltei a pegar na caneta. Dediquei-me à leitura: Lobo Antunes, Saramago e, se o tempo permitisse, Tolstoi.