Acordo abro uma fresta na cortina e espreito o dia. Um sol tímido desabrocha a vida em sons poucos e raras pessoas. Confiro a imensa arvore do estacionamento em frente, abrigo de uma família de sabiás cujo canto tem os madrigais das manhãs e a sinfonia das tardes. Observo no terraço ao lado o vaso de damas da noite que impregnam o apartamento de um perfume suave e adocicado e nas manhãs se enclausuram do dia. Dispo o ontem e o coloco no cesto de roupas usadas, no chuveiro lavo os humores e o suor da madrugada, inauguro meu dia. Tomo café ligo a TV, vejo as cotidianas mazelas, mais uma tragédia no Rio agora nas lindas cidades da Serra e algumas poucas noticias. Desço e mergulho anônimo no anônimo burburinho da rua, no céu já azul as poucas nuvens restantes se esgarçavam ao vento. Liberto o moleque paulistano que vive em mim para vasculhar nas ruas vestígios de minha infância, os paralelepípedos sob o asfalto, os casarões solenes hoje vestidos de prédios. Cruzo com jovens e velhos, executivos, advogados, empregados, desempregados, solertes uns circunspetos outros, uma jovem de saia preta sobraçando um volume de pastas protegendo seu colo, bolsa a tiracolo anda rápida com passos miúdos e graciosos. Como ficam lindas as mulheres com saias pretas. Contenho o meu moleque para não olhar a jovem que passa e me expor lúbrico a observar seus passos. Entro na praça próxima ao escritório, súbito vejo-me frente a frente a uma jovem com uma menina pela mão, naqueles momentos em que não sabendo a que lado ir, nos vemos pasmos frente a estranhos que se impedem mutuamente o andar. No rosto sem maquiagem noto sinais de sofrimento, nos olhos o brilho fugaz de uma alegria agonizante, abaixa as pálpebras como velas enfunadas e me esconde o olhar navegador. Olho a menina e surpreendo imensos olhos castanhos, me presenteia com o calor terno de um sorriso rasgado, abro passagem e balbucio – Desculpe, ela responde - Nada Senhor, sem me encarar. Fico ali estático vendo as duas seguirem seus caminhos pisando suas sandálias simples nas pedras portuguesas do calçamento, ambas de vestidos estampados o da jovem esmaecido de lavagens muitas e o da menina novo, a menina volta á cabeça, reprisa o calor reconfortante do seu sorriso, percebo seus cabelos cacheados dourados pelo sol, estende o braço me acena adeus com seus dedos gorduchos onde pressinto covinhas e um olhar cúmplice para o meu moleque, a jovem também se vira, mas longe me foge o brilho do seu olhar, retribuo o adeus da menina.
Como ficam lindas as mulheres com vestidos estampados. Continuo o caminho, recolho o meu moleque paulistano para dentro de mim e sou absorvido pelo cotidiano da manhã.
Carlos Said