Prosas Poéticas : 

UM DIA DE VERÃO: FOI COMO DEVERIA TER SIDO

 
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Gê Muniz

UM DIA DE VERÃO: FOI COMO DEVERIA TER SIDO

Eu e o cimento fervente testemunhamos.
Uma espadada de pé-de-vento espeta em oressas as portas que dão para a rua.
O bafo quente do verão circunda as casas numa ciranda colorida.
Impõe-se o juízo da vagareza de ação aos braços, aos dedos das mãos...
Há um homem (sempre há um homem...) - nem sei de onde ele surge - que passa de Kombi a vender mamão papaia e outras frutas bem aguadas.
Ele grita, disputa a atenção, agita-se numa conversa conservada numa paradoxal secura...
Atrapalha-me o som da agitada canção que imola os meus ouvidos do outro lado da calçada enquanto o sol despenca seus raios nos quartos; provoca o desmaio das sombras em assombros deitados sobre os criados-mudos das janelas abertas...
O calor já manda recados aos meus sovacos, aos sapatos, à cueca de que existe nos trópicos uma ordem estelar superior e avessa à qualquer forma de elegância...
Um cachorro magro atravessa a tristeza do calor e da fome.
Por isso, dorme.
Nos bares em que passo fervilham os aposentados.
Aguardam sentados o silêncio do sol em mesas de cervejas e cartas de truco.
Só param o jogo para apreciarem as meninas douradas de shorts, vampirezas dos seus olhares, dos meus olhares...
Entro nos corredores frescos do mercado municipal trombando os ombros nos desmandos do próprio andar sobre os calcanhares das sandálias.
Piso incomodado os pastosos escombros de legumes, verduras e frutas, essa passarela da cadeia alimentar todinha aos meus pés.
Ouço o murmúrio confuso das palavras, cálidas, esgarçadas como é comum nessa época.
O som do verão é sumamente tão enfadonho, quanto risonho...
Vem-me em conjunto o eco de minhas frases mentais entrecortadas que desfazem e refazem os cenários das impressões daquele momento.
Agora começa uma chuva aguda que cai. Formam-se corredeiras às laterais da rua.
Inundam-se beirais de prédios, afundam-se os pneus dos carros.
Pinga minha roupa, os cabelos, os olhos, a vida que já não me escuta, a voz interior surrada e muda.
O trânsito nas avenidas flui equivocado pelo recado dos semáforos desligados.
Revolta dos motoristas.
Em vinte minutos, de vez, o sol promove seu triunfal retorno.
É tudo muito rápido no verão: as alegrias, as dores, os calores, os maus-humores, a explosão devastadora das tempestades...
É nessa espécie de celeridade regada a absinto que os amores em profusão envolvem os arredores, numa resignada revoada.
Batem nas praças suas asas, de mãos entrelaçadas...
E toda e qualquer esperança alheia espelha a mim e se dispersa diante de meus olhos.
As paixões armam suas teias nos cinemas, teatros, praças, bares, livrarias a somarem mais beijos, esfregões, mãos nas coxas, chupões no pescoço...
Agora - e todo verão - é esse estado performático de festa de sorrisos das bocas e dos olhos de quem diz que ama, de quem diz que, no amor, nunca se engana.
A estação vai e cai no ar úmido e o sol esquenta, se desnuda e desnuda como sempre houvesse mais uma peça de roupa a ser retirada.
Sei que os dias se sucedem e, pouco a pouco, mudam, mas, para mim, é tudo muito igual porque o sol continuamente se excede, avança, recua, seca e dá sede nas línguas todas.
Mas eu vejo que essa loucura toda tem algum sentido e, no fundo, não é loucura nenhuma.
Que bom que eu vejo, eu vejo...
E os meus olhos acusam-me finalmente de olhar e perceber boas razões para ser e viver e imiscuir-me em tudo o que é só porque é mesmo assim...
De alguma forma, distenso e amolecido pela extorsão deste verão, vou para casa e tomo um longo banho.
Ligo um ventilador qualquer e escrevo sem piedade ou economia frases sobre como deveria ter sido meu dia (e mesmo foi).
 
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GeMuniz
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Enviado por Tópico
ladywhite
Publicado: 28/01/2011 01:18  Atualizado: 28/01/2011 01:19
Colaborador
Usuário desde: 31/12/2010
Localidade: white land
Mensagens: 765
 Re: UM DIA DE VERÃO: FOI COMO DEVERIA TER SIDO
Texto muito bem escrito!
Neste leito onde estou deitada, porque estou impedida por alguns factores que sabemos...
...de me locomover, pela fragilidade do momento...
levaste-me num passeio, foi como se descrevesses a um invisual, que não é o meu caso... esta tela de vida, e levaste-me a conhecer uma realidade de um dia que foi,como deveria ter sido.
Foi bom desfrutar desta leitura, como se visse a vida aí a pulsar na tua cidade.

Obrigado por este momento meu amigo Gê.

Beijos

Milady


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/01/2011 01:19  Atualizado: 28/01/2011 01:19
 Re: UM DIA DE VERÃO: FOI COMO DEVERIA TER SIDO
Deve ser desconfortável assistir a mudanças climáticas tão bruscas. Aqui em Portugal no Verão não costuma chover, felizmente, está sempre calor, o que às vezes também traz aflição. Mas ainda bem que o Gê vê e aceita as coisas como elas são, depois da tempestade vem a bonança e também os afagos que acaba por ver. A vida é assim com momentos de tudo e é como o tempo, inconstante, pode-se estar menos bem em determinado momento do dia, mas de repente tudo muda e fica-se melhor. Gostei muito da sua descrição, acho que o Gê escreve muito bem e de forma clara.

Abraço

MÁRCIA ROSAS


Enviado por Tópico
Gyl
Publicado: 28/01/2011 01:34  Atualizado: 28/01/2011 01:34
Usuário desde: 07/08/2009
Localidade: Brasil
Mensagens: 16148
 Re: UM DIA DE VERÃO: FOI COMO DEVERIA TER SIDO
Fui contigo nesse texto atual e urbano, meu querido. Encantei-me com a Kombi cheia de mamão de papaya. "eu e o cimento" foi genial. Sempre um enorme prazer trocar textos contigo, meu querido poeta. Um forte abraço e tenha uma ótima noite! Valeu, Gê!


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/01/2011 01:54  Atualizado: 28/01/2011 01:54
 Re: UM DIA DE VERÃO: FOI COMO DEVERIA TER SIDO
Será que não é o mesmo Gê?...rs
Sabe, nós em Portugal estamos habituados a tratar e a ser tratados de outra maneira... Aqui, nós usamos no tratamento o nome da pessoa ou o termo "senhor", "senhora", "menino" ou "menina" em vez de "você".
O termo "você" praticamente não se usa cá, ele não pega!
Ora o Gê não quer ser tratado por "senhor", acho que também não quer ser tratado por "menino" e eu ainda não me habituei ao termo "você", esqueço-me de o usar. Vou tentar não me esquecer...

Abraço Gê

MÁRCIA ROSAS


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/01/2011 02:04  Atualizado: 28/01/2011 02:04
 Re: UM DIA DE VERÃO: FOI COMO DEVERIA TER SIDO
Sempre as intensidades, gosto dos teus textos, sempre visualizo...


Beijo grande.


Enviado por Tópico
Sergio de Sersank
Publicado: 28/01/2011 02:07  Atualizado: 28/01/2011 02:07
Super Participativo
Usuário desde: 13/01/2010
Localidade: Londrina-PR BRasil
Mensagens: 159
 Re: UM DIA DE VERÃO: FOI COMO DEVERIA TER SIDO
“Eu e o cimento fervente testemunhamos.”
“Eu e o cimento fervente testemunhamos.”
“Eu e o cimento fervente testemunhamos.”
Estou tentando, acredite, assimilar essa frase que inicia a crônica. Ela endurece rapidamente. Queima-me um tanto da paciência em insistir que deslize sobre ela.
Esforço-me. (Convenhamos que é uma frase dura).
Uma crônica iniciada assim, exige muita habilidade, há que, no final, amolecer as arestas.
E é ponto pacífico que todo trabalho literário precisa ter começo, meio e fim.
Busco, então o recheio: surge um homem. (“Sempre há um homem”) isso torna a coisa interessante.
Mas, o autor ignora de onde surge e para onde vai. Sabe-se apenas que vende frutas. Deixêmo-lo, então...
Agora, a sua proposta (a da autor, claro) é um cão, aparentemente sem dono. Este surge do nada, com fome e sonolento. Será grande, pequeno, preto, branco, que sei eu? Que saberemos nós?
Mas espere: vamos olhar para o recinto daquele bar que o autor nos aponta, onde uns aposentados bebem cerveja e jogam cartas. Que interessante! Mas o bar também, assim como os freqüentadores, não têm graça nenhuma!
Vamos passear pelo mercado municipal. Talvez as coisas fiquem menos entediantes... Mas, como incomodam “os pastosos escombros de legumes, verduras e frutas”...
Devo confessar: não estou gostando nada do recheio desta crônica trivial.
Mas, ela há de ter, com certeza um bom fecho. Prossigamos lendo:
Mesmo porque, “chove por alguns momentos e é tudo muito rápido, no verão”.
- Êpa, de repente surge, a despropósito, um multidão de seres confusos (não percebida antes) e tudo para o cronista é muito igual, uma loucura que faz sentido e acaba nem sendo loucura nenhuma. (Và entender!)
Que bom que só ele vê essas coisas, como faz questão de dizer.
Por fim, resta-lhe ir para casa tomar um banho demorado e, na falta do que mais fazer, deixar a inspiração fluir e escrever sua mais nova obra-prima: “Como foi ou deveria ter sido o meu dia”.
Ao pobre leitor, fica o cimento fervente queimando os pés.

Com sinceridade,
S. Sersank


Enviado por Tópico
carolcarolina
Publicado: 28/01/2011 02:15  Atualizado: 28/01/2011 02:15
Colaborador
Usuário desde: 24/01/2010
Localidade: RS/Brasil
Mensagens: 9299
 Re: UM DIA DE VERÃO: FOI COMO DEVERIA TER SIDO
Amigo Poeta
Gê!

Que lindo texto poeta!
Nossa mas que dia heim poeta?
Adorei o recado que o calor mandou aos sovacos. Nos onibus num dia de calor, nenhum sovaco aceita recado e quem é baixinha é que sofre com eles.
Amei!
Bjos
Carol


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/01/2011 02:40  Atualizado: 28/01/2011 02:40
 Re: UM DIA DE VERÃO: FOI COMO DEVERIA TER SIDO
Amigo Ge, escreves muito bem! Os meus parabens! Abraco!


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/01/2011 13:09  Atualizado: 28/01/2011 13:09
 Re: UM DIA DE VERÃO: FOI COMO DEVERIA TER SIDO
Ah, mas eu não o vou tratar por menino, o Gê já deve ser bem crescidinho para isso, já deve ter pêlos no queixo.rs

Abraço

MÁRCIA ROSAS


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/01/2011 13:49  Atualizado: 28/01/2011 13:49
 Re: UM DIA DE VERÃO: FOI COMO DEVERIA TER SIDO
*Aplaudo-te!
Tu incursionas em todos estilos e em todos tu laças o leitor!
Beijos de admiração sempre
Carinho
Ka*