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Gê Muniz
TODOS
É madrugada e o sono não vem. Todos na cidade dormem. Nem deveria ser diferente. Todos têm de acordar amanhã cedinho. Todos possuem um objetivo a cumprir, um trabalho a honrar e as contas do mês estão todas aí.
Penso que todos se sentem aptos e animados diante às boas perspectivas da economia no país e, além de acompanharem com interesse o noticiário dos jornais, incrementaram força a sua determinação lendo livros de auto-ajuda, o que contribui bastante para aquisição de confiança. Bendito momento da literatura em que esse tipo de leitura ganhou tamanha força. Agora tudo ficou fácil. Todos andam tão bem instruídos e responsáveis. Sabem que trabalhar com motivação e foco nos objetivos é o primordial para propiciar o melhor para si e para a família.
Bem, além da família, também há os amigos. Aqui é Brasil, gente, terra de um povo hospitaleiro e agradável. Nessas terras tupiniquins, ser camarada é sinônimo de dividir alegrias, estrepolias, fazer festa juntos. Vejam: Quem não gostaria de convidar os amigos para um lauto churrasco a fim de comemorar os bons eflúvios, as vitórias, as conquistas? É por essas e outras que todos se consideram protegidos, irmanados nessa sociedade cordial...
Adiante ao trabalho, ao sucesso, também é preciso relaxar (nem só de pão vive o homem): todos desejam passar um fim de semana em Ilha Bela, Ipanema, Guarujá, ou Fortaleza. É certo que há alguns receios. Compreensível que todos prefiram que estejam presos todos os bandidos e traficantes para que possam andar pela orla tranqüilos.
Ah, os prazeres da vida... Todos adorariam aproveitar em total paz o passeio para comer lagosta e camarão do graúdo, acompanhado de um vinho branco, o que todos dizem ser divino. Na volta do litoral no domingo, mais um motivo para o relaxamento: todos torcem para ver seu time de futebol ganhar o clássico e papar o campeonato.
Uma coisa leva a outra. O gostoso final de semana lembra a todos das futuras férias (porque ninguém nesse país é de ferro). Todos aspiram viajar ao menos uma vez na vida para Paris e ver em cores e ao vivo a Torre Eiffel, e, ainda (por que não?), as grandes pirâmides, o Taj Mahal. Sonhar não custa.
O mais é encarar o cotidiano. E o que todos necessitam no dia-a-dia é proporcionar a melhor educação possível para si e seus filhos. Todos por aqui precisam falar ao menos inglês e espanhol e cursar um MBA. Por último, o corriqueiro: todos carecem urgentemente, desesperadamente de trocar guarda-roupa, sofá, TV, geladeira, carro, celular, computador, casa, emprego, mulher, marido, amante. Todos não medirão tempo ou esforços para obterem essas profundas mudanças.
Ao mesmo tempo, como fosse isso facilmente realizável, todos anseiam amar profundamente o parceiro, cada dia mais e para sempre, de preferência. Ah, na idéia de “sempre” consta um importante detalhe: todos detestam envelhecer; detestam. Portanto todos sonham em permanecer eternamente jovens, todos com músculos tonificados e pele de bebê. É preciso muitos cremes, botox e academia. Para manter-se jovem paga-se um preço e, nisso, todos concordam que manter a juventude é dinheiro muito bem gasto.
Enfim, todos almejam ser felizes daquele jeitinho todo especial e único que foi construído em suas memórias desde criança pequena o que, no fundo, é o mesmo jeito de todos os outros. Todos querem isso tudo, mesmo que possam sentir interiormente tudo ao contrário, mesmo que não saibam conscientemente que diferente desejam e nunca venham a saber, ou perceber. Todos tão afortunados, focados no sucesso, de olho no futuro. Todos enredados por seus justificáveis desejos.
E todos consideram que os outros todos, todos mesmo, sejam eles homens ou mulheres, ricos ou pobres, jovens ou velhos, têm as mesmas preocupações e anseios do que os que habitam esses apartamentos e casas de três quartos com dois carros na garagem e bicicletas de marchas penduradas nas paredes. Talvez todos, sem uma única exceção, tenham razão.
Pobre de mim tão distante de pretender coisas assim, tão afastado de "todos" e, ao mesmo tempo, tão apartado de mim. Maldito sono que não vem.