Estava frio naquele dia de Dezembro e eu enroscava-me na minha manta branca aos quadrados azuis enquanto ia mudando os canais da televisão.
Não tinha nada para fazer e sentia-me aborrecida como qualquer outra pessoa que não tem ninguém para falar. Levantei-me do sofá arrastando a manta como única companheira dos dias frios da minha vida. Algo me chamava para fora de casa. Espreitei pela janela onde o sol não saudava ninguém. Talvez fosse dia de folga no universo dos deuses.
Fui ao sótão buscar a habitual árvore de Natal e os enfeites. Escolhi outro canto da sala para montar a minha época natalícia, mais perto de mim, do meu sofá, dos meus pensamentos, das minhas perdas. Após duas horas pus-me a sentir o calor do presépio, o brilho das fitas e o encanto dos enfeites. Não havia Pai Natal! Eu nunca tinha comprado um. Faltava-me uma lareira para aquecer o meu olhar no fogo que me consumia. Faltavam-me tantas coisas…
Vesti-me e andei a pé durante 2 horas. Não procurava nada, apenas queria que o meu cabelo solto e esvoaçante ao sabor do vento que eu detestava, me adormecesse os sentidos. Ia escurecendo e a cidade iluminava-se com luzinhas de muitas cores. Era Natal! Fui à pastelaria Bénard para me abrigar do vento. Estava quentinha a sala e pedi um chá de camomila que me aqueceu a alma descoberta pelo coração. As pessoas entravam e saíam sorridentes, agasalhadas e felizes.
Já era noite quando deixei o meu lugar vago e deambulei pela cidade até ao Cais do Sodré. Talvez jantasse no Irish Pub Hennessy’s… Comia-se lá um delicioso prato de salmão fumado irlandês, uma comida que eu tinha aprendido a gostar há muitos anos, demasiados!
Estava distante, embrenhada nas minhas memórias que contemplavam, extasiadas, o Tejo iluminado apenas pela lua. Sem enfeites de Natal. Sem presépios.
- Boa noite, menina…
Apertei o cachecol, enfiei as mãos nos bolsos do casaco e nem precisei de olhar para trás.
- O António por aqui?
Há mais de seis meses que o destino não nos facultava um novo encontro. Sentia saudades daquele senhor, das poucas pessoas sábias e inteligentes que tinha conhecido.
- Vim ver o Natal à rua. Esse olhar vazio sempre presente no seu rosto, Beatriz…
Virei-me para ele e sorri. Éramos duas pessoas estranhas e sós.
- São as escolhas da vida que nos fazem olhar o mundo no intenso afogamento do nada. Outras vezes, nem tempo temos para escolher. O destino impõe-se e desfaz-nos os sorrisos.
Comecei a caminhar medindo as pedras da calçada, olhando o Tejo como só eu o sabia olhar. O António acompanhava-me neste silêncio de almas.
- Talvez vá jantar ali ao Hennessy’s. Gostava que viesse comigo, António.
Ele riu alto, olhei-o espantada por não lhe conhecer aquele riso solto.
- Já sou muito velho menina, para frequentar esses lugares.
Reparei que não trazia a sua bengala castanha. Sempre achei que ela nunca o amparara. Seria mais uma espécie de adereço.
- Não diga isso, todos os lugares são bons para todas as idades. Tudo está na nossa cabeça…
- Acha, Beatriz?
Claro que esta era a minha maneira de viver, de encarar o mundo na sua rotação de contrariedades. Não gostava de pessoas fúteis, do cinismo que emanava delas, do cheiro dos seus olhares.
- Acho! O António é uma pessoa genuína, de conversas cheias, com quem apetece estar nas recordações compulsivas das nossas vidas. Aceita o meu convite?
Sorriu com carinho, passou a mão pelo meu cabelo e ficou a olhar-me demoradamente. Como um pai que olha para a sua filha adivinhando o que lhe vai na alma. De novo, senti-me inquieta.
- O que o Tejo guarda nas suas profundezas que tanto a faz sofrer, Beatriz?
Quase desfaleci ao toque inquietante daquela pergunta. O frio trespassou-me o olhar e retalhou-me o gesto que ficara parado nas águas do rio.
- Um dia…Talvez um dia me conte, menina…
E foi caminhando no seu andar lento deixando-me uma lágrima de saudade.
Entrei no Irish e escolhi um lugar recatado.
Manuela Fonseca