Tudo aconteceu num dia como este. Luminoso e ao mesmo tempo escondido atrás das nuvens cinzentas. Tu, marinheiro, pescador de trinta anos. Eu, uma moça da vila, vinda das ruelas de Lisboa. Neta de um pescador e filha de um sapateiro. Visitava a Nazaré em criança e eu via-te, escalando os penedos para ver a marca de um cavalo. Cheguei de uma cooperativa de Lisboa para ajudar a minha avó numa taberna dela. Passava nas ruas de madrugada, regressando a casa e tu saías para estar com o mar... Eu, dada às cantigas, procurava música em tudo, mas não encontrava uma no mar. Lisboa, para mim, antes era um pesadelo! O barulho dos carros, o ruído dos eléctricos sobre as pedras da calçada. O constante caminhar dos que trabalham nos mais diversos sítios da capital, o palrar entre as mulheres, sedentas de conhecimento sobre a vida alheia,tudo isso incomodava-me... Agora, na Nazaré, Lisboa era um sonho. Um sonho que queria viver contigo. O fado foi a promessa que Lisboa me dera. Porém, apreciava a calma nazarena. Os pregões e a tradição eram algo mágico, soberbo! Apesar de não ter nascido rica, não era pobre. O negócio do meu pai subiu desde que ele mudou o seu estabelecimento para o Chiado. Troquei a mocidade de Lisboa pela costa nazarena aos 18 anos. A taberna da minha avó era algo pacato. Frequentado por alguns pescadores e homens que trabalhavam nos arredores. A minha avó tomara o negócio desde a morte do meu avô no mar. A taberna era uma forma de sobrevivência da minha avó. Nunca antes tinha namorado com alguém, a não ser com o destino... Nunca esquecerei o dia em que encontrei a tua canção, a canção do mar. Na praça, onde se encontra a taberna da minha avó, as guitarras tomaram lugar num soluço de solidão. Como não havia letra para tal canção, decidi cantá-la com a letra do coração.
Solidão De quem tremeu A tentação Do céu E dos encantos Eis o que céu Me deu Serei bem eu Sob este véu, De pranto
Enquanto cantava, apercebi-me que um coro me acompanhava. Tanto feminino como masculino.
Sem saber Se choro algum pecado A tremer Imploro a céu fechado
Então foi quando tu apareceste na praça. Onde parecia que toda a Nazaré estava reunida. Trocámos um olhar.
Triste amor O amor de alguém Quando outro amor Se tem E abandonada E não me abandonei Por mim, Ninguém Já se detém Na estrada
Foi nesse momento que dei por mim, no meio da praça aplaudida por todos. Tu em especial. Conhecia-te de vista, mas foi naquele dia que soube como te chamavas. - Ó António! Anda cá! Vem conhecer a Mariana, a neta da ti . -Chamou o Zé-da-Horta. -Menina. -Disse ao aproximar-se de mim tirando a boina. - Este é o António. É o melhor pescador da Nazaré! - Não diga isso, ti Zé! Muito prazer, Mariana. Um aperto de mão foi o nosso primeiro contacto físico. Ficámos encadeados no olhar. Tudo à nossa volta parecia ter congelado. Senti um redemoinho de emoções no meu corpo, um misto de cores já referidas pelos poetas e escritores. Naquele momento estivemos ligados por um vínculo. O vento parou de soprar contra a vegetação. O sol desfalecia para lá do horizonte. O mar deixou de lutar contra as rochas, que protegem as peugadas do cavalo de D.Fuas Roupinho. A noite havia chegado. E era noite de festa! Os bailes tradicionais e a venda dos mais variados petiscos nazarenos convertiam totalmente o clima de lá de cima. A vista da falésia continua fantástica, porém ela desvaneceu-se naquela noite. O luar era mais forte que as luzes coloridas da romaria. Suspensos em sorrisos ficámos. Deveriam ter passado dezenas de minutos, talvez horas, sem proferirmos uma única palavra. Não silenciá-mos o silêncio, pois aquele momento dizia tudo. Trocava-mos pensamentos por telepatia. Pensamentos sobre o amor... - Então, quantos anos tens, Mariana? - Dezoito anos, apenas. - Senti-me corar perante aquela pergunta. - Peço desculpa pela pergunta. Sei que não é delicado perguntar a idade a uma senhora. - Não sou senhora. - Ripostei. - De ti não... Ficámos novamente em silêncio. Todo o frio daquela escura noite desaparecia lenta e calorosamente. Apercebi-me então que estava destinada a ti. E tudo em meu redor me dizia que eu estaria sempre contigo. - Então tens dezoito anos e nunca namoraste? - Não... - Respondi novamente corando. - E nunca quiseste? - Não é algo de que eu dependa. Mas confesso que invejo um pouco as raparigas da minha idade, por serem comprometidas. - Talvez até já passaste pelo teu Amor. - Talvez ele está a olhar-me agora... Ficámos por fim em silêncio. Ambos sentia-mos o mesmo e sabia-mos o que estava a acontecer. Os sinos tocaram. O tempo tinha passado depressa. Vi as gentes mais velhas a partir da romaria. A minha avó chamou-me e sabia que tinha que me despedir daquela tão luminosa noite. Disse-te um adeus apressado e juntei-me à minha avó no caminho de regresso a casa.
Pedro Carregal
Neste segundo capítulo inicia-se a selecção de outros fados para além do Barco Negro. Neste capítulo é prestada homenagem ao fado ''Solidão'' que mais tarde veio a ser mais conhecido pela sua mudança de letra e de título para ''Canção do Mar''.