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Barco Negro - 1º Capítulo

 
 
Acordei. Era de manhã. A luz preenchia o meu quarto de paz, de calma. A janela permanecia aberta e a fresca brisa do mar despertava-me a memória lentamente.
Olhei para o lado. Não estavas lá! Estava sozinha. Abandonada por entre os lençóis brancos da nossa cama. Da minha cama!
Deslizei como uma moribunda no deserto. Levantei-me e fitei-me no espelho. Tinha dormido com a vestimenta do dia-a-dia. O tão habitual vestido negro.
Achei-me feia perante a tua beleza, o teu pudor. A tua beleza! Perdida! Desaparecida!
Vi o teu olhar reflectido no espelho, a tua cara, o teu rosto. O teu belo rosto...
Contudo, dizias que não. Que não era feia. Que era superior perante ti. Que era dona das ondas do mar e senhora do seu areal. Regia os ventos e tempestades e amansava a turbulência do oceano.
Quem me dera que assim fosse! Para poder tido-o amansar no dia anterior...
Desci até à praia. O irromper da alva simbolizava a mesma paz e calma da minha casa.
A praia encontrava-se vazia. Nenhum barco estava atracado... Todos os barcos tinham sido levados pelos seus pescadores. Todos, excepto o teu...
Fechei os olhos para me esconder da luz. Deitei-me na areia. Abracei-te nela. O teu corpo, que ali nunca estivera! Um corpo imaginário. De pele sedosa e perfumada pelo silêncio das ondas.
Acordei rodeada pelo povo, pelas mulheres da vila. Tremia ao sol. Gelava ao seu calor.
-Não és feia, meu amor... - Sussurrou a tua voz.
E daí, senti o calor do sol, penetrando o meu coração. E eu via o teu olhar nele, para nunca mais o ver...
Vi nas rochas uma cruz. Não local de culto, mas sim de morte. Porém, para mim, esse local será sempre o meu altar de oração.
O teu barco desapareceu da doca e agora dançava à luz do sol. A mesma luz que dava o azul àquele mar. Tal azul que outrora havia sido negro. Esse negro oferecido ao teu barco...
O teu barco negro atentava um ritual de loucura contra mim. Era aliado do sol. Depois, as velas soltaram-se e vi o teu braço entre elas, mostrando o teu último gesto de amor, de adeus.
As velhas da praia rodeavam-me.
Gritavam-me, choravam-me e diziam-me:
-Ele não volta, filha!
-Não volta!
Mas os teus gestos diziam que não. Contrariavam o que elas diziam. Então apercebi-me que tu nem chegaste a partir...
-São loucas! -Gritei, agarrando a areia. -São loucas! -Chorei e suspirei. - São loucas!
Levantei-e e cantei-te. Eu queria cantar-te um fado.

Eu seu meu amor
Que nem chegaste a partir
Pois tudo em meu redor
Me diz que estás sempre comigo

E repeti. Entre o choro, entre as lágrimas, entre os soluços. E as velhas choravam. Gritavam o mesmo.
-São loucas! São loucas!
Eu sei que tu não me abandonaste. Tu estás sempre comigo. Em pequenos aspectos, em pequenos lugares, estarás sempre lá.
E os sinos da igreja tocavam. E eu cantava. Gritava!
-São loucas! Vocês são loucas! Ele nem chegou a partir!
O vento roubava a areia da praia e lançava-o contra os vidros das janelas das casas. A água espalhava o fogo mortiço do sol. Do quente. Desse calor do leito nos barcos vazios, esquecidos pelo tempo.
Assim eu sei que estarás sempre comigo. Nestes pequenos gestos de carinho, de saudade.
Assim eu sei que nunca partiste. Que nunca me deixaste nessa fria manhã.
Que nunca morreste. Nunca me deixarás, meu amor. Nunca, meu amor!
Tudo! Tudo o que testemunhou o nosso amor diz e afirma que nunca me deixaste. Que estamos sempre juntos!
Que seremos imortais...


Pedro Carregal

Barco Negro é um conto baseado em vários fados, cada capítulo faz homenagem a um fado mas a história centra-se em Barco Negro
 
Autor
PedritoDomus
 
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