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O Relógio dos Lavradores

 
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Fui nascido e criado numa freguesia que a linha do comboio do Douro dividia ...Não me lembro da sua construção, mas minha avó falava muitas vezes no "Caminho do Inferno", em vez de dizer "Caminho de Ferro".
Para as mentalidades do povo da aldeia nos finais do século dezanove, a chegada do comboio era o prenúncio de muitas desgraças: os operários não apareciam na Missa de Domingo, mas trabalhavam de sol a sol sem respeito pelos dias santos ou Domingos...
As locomotivas cuspiam fagulhas que o vento espalhava por toda a parte e minha avó, quando à noite se ouvia o apito estridente do comboio que se aproximava, levava-me até à janela para eu ver o fogo, escutar o ruído, cheirar o fumo negro e dizia:
- Vês? aquilo é obra do diabo...o inferno passa por aqui...Se não rezares muito nem fores à igreja, um dia o demónio leva-te para aquele fogo
E eu uma criança de três ou quatro anos ia para a cama assustado... Sonhava com os comboios que adorava ver exalar tanto vapor branquinho, fagulhas cintilantes e assustar as ovelhas e galinhas que eram criadas de um e de outro lado da linha...Nunca sonhei com o inferno nem com as retaliações que aquela avó tanto apregoava...

Depois fui crescendo e aprendendo que a vida campestre se regulava pela passagem dos comboios...Pelas seis horas da manhã saía do Marco o "Recoveiro" que parava em todas as estações e apeadeiros...era o mais barato e ditava a hora de sair da cama de todo o pessoal da aldeia....
-Vamos à vida!!! o "Recoveiro" já lá vai... - Era o que os lavradores diziam aos moços da lavoura que saiam da cama com olhares turvos e caminhar cambaleante da sonolência que pedia mais cama...
Depois cerca das dez horas vinha o "comboio correio" procedente do Porto e era tempo de se "comer o caldo" na malga que continha couves, feijão, batata... e era "adubado" com "pingo" de porco ou um fio de azeite.
O pingo era a gordura da carne de porco onde os rojões tinham sido cozinhados uns dias depois da "matança" do bicho...com o frio transformava-se em banha!

A hora do meio dia era determinada pelo cruzamento de duas composições: uma que vinha do Marco e seguia para o Porto e outra que vinha do Porto e seguia para a Régua.

Pelas três da tarde era a hora da "merenda"...quando passava o "comboio canário" onde vinham as caixas do peixe com sardinhas, carapaus e chicharros...Nesta altura a "Micas Sardinheira" vinha da estação da Livração com a sua canastra repleta de peixe que ia apregoando pela freguesia de porta em porta...


José Mota

 
Autor
PoetaSenior
 
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Enviado por Tópico
Branca
Publicado: 07/01/2011 16:18  Atualizado: 07/01/2011 16:18
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Mensagens: 3024
 Re: O Relógio dos Lavradores
Que fantástico este relógio. Mesmo cuspindo suas fagulhas, era certeiro. Gostei muito do texto. Beijo.
Branca.