Claro, não sou obrigado a escrever. A não ser por dinheiro. Há muito tempo perdi a visão´romântica da escrita. Tenho contas a pagar no fim do mês e algumas dívidas acumuladas. Quem não as tem?
O fato é que ao meio-dia e meia desta véspera do Natal saio à rua para me abastecer.Daqui a pouco o comércio todo - comércio todo para mim são bares e similares - estará fechado,para o meu desencanto. Daqui a pouco, a maior parte das pessoas despirá as vestes de angústia e desespero usadas o ano inteiro. Logo,logo, todos estarão envoltos em mantos de bondade e felicidade, com um sorrisinho idiota nos lábios: "Feliz Natal!"
Os bares, que vão fechar às três, quatro horas, estão apinhados da gente infeliz dos escritórios que escolhe datas para encher a cara. O chefe e o patrão, que humilham e pisam nos seus subordinados o ano inteiro, também participam. Alguns até fazem discursos improvisados, com escorregões na oratória, enaltecendo as qualidades que, durante o ano, nunca enxergaram nos funcionários presentes.
E dá-lhe cerveja. E dá-lhe sorriso. Em algumas empresas há a cretina brincadeira do amigo secreto ou oculto. "É só uma lembrancinha, espero que goste." O que recebe o presente,ao abri-lo, diz: "Nossa, mas era disso mesmo que eu estava precisando." Ou: "Ai que fofo! Que lindo", algo mais ou menos assim como os comentários feitos aqui no Luso.
Depois, da janela dos escritórios, a chuva de papéis picados, que se repetirá no Ano Novo e que só serve para emporcalhar a cidade e entupir os bueiros, porque estamos em época das chuvas. Mas, deixa pra lá. É Natal!
Sigo rumo ao supermercado. Preciso me abastecer. De álcool e cigarros principalmente.O saco é que odeio beber em casa. Não vejo graça nenhuma. Antigamente, aqui no Bixiga, havia um bar que ignorava essas datas e funcionava normalmente vinte e quatro horas. Mas a prefeitura achou por bem fechá-lo por alguma irregularidade que desconheço.
Meia hora de fila no supermercado. Mas é Natal e eu também tenho de fingir felicidade. Agradeço e retribuo votos de quem nunca vi. Calma, Júlio, é o espírito natalino.
Perto de casa, na calçada, quatro cães esparramados no chão, dois homens, duas mulheres, uma adolescente. Já estão se esquentando para a meia-noite. Uma garrafa de pinga já está pela metade. Vasilhas cheias de comida: feijão, arroz, frango cozido. Eis o cardápio da ceia, que também será comido no almoço de agora. Caso não sobre, o estoque de cachaça tapeia a fome. Digo isso porque um terceiro homem acabou de chegar, trazendo mais dois litros da santa aguardente. Minha generosidade se aguça e eu me aproximo e deixo um maço de cigarros com um dos integrantes do grupo. Ele me oferece um gole de pinga. Sem nenhum nojo, deixo que a maldita desça goela abaixo. E saio, não sem antes receber os votos de um feliz Natal.
Feliz Natal! Feliz Natal! E bato em retirada.À meia-noite, devo ligar para o Rio de Janeiro, caso o serviço telefônico não esteja congestionado.Mas tem de ser à meia-noite. Não tenho o direito de quebrar o encanto de quem acredita no sonho.
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júlio
Júlio Saraiva