Levantamos-nos de manhã, esticamos os braços de encontro ao horizonte, tentamos alcançar os céus e bocejamos escandalosamente. Uma, duas, três, as vezes necessárias até termos decidido se nos vamos manter na horizontal se vamos experimentar a temperatura da água. Da torneira! Sim! Da torneira! Rodamos o pulso sobre um puxador, uma manivela e verte-se água. Se fosse da fonte ou do poço lá da quinta sabia, de antemão, que vinha fresquinha mas assim, a da torneira é uma surpresa à mercê dos canos.
Chapinhamos o rosto como que a apagar todo o vestígio de sono, sonho ou pesadelo e, nisto segue-se-lhe outro ritual, higiénico. Comemos! Pois está claro que sim! Sem fonte de energia não subsistimos. E a seguir?! Bom a seguir, outro ritual, para os viciados em cafeína e nicotina sai uma bica, italiana para os preguiçosos e um cigarrito.
Finalmente estamos prontos! Toca a produzir! Ups! Esquecia-me. Faltam as incógnitas. E quem tem filhos?! Levantá-los sonolentos, vesti-los no meio da rabugice, preparar o farnel, carregar cadeiras, montar-se no carro, percorrer ruas e estradas e ruas num trânsito mais ou menos congestionado (...) em percursos mais ou menos longos! Levar à escola; buscar ao colégio; deixar à dos avós (...) nesta azáfama quando começamos a produzir já temos meio dia de trabalho!
E o almoço do marido?! Que hoje se lembrou de ir a casa. E o bolo da amiga?! Faz anos! Vale a pena a surpresa. E o café com o tal amigo especial? Que só não é amante porque os dias não passam além das vinte e quatro horas. E a roupa que ficou esquecida no estendal? Quem a vai apanhar? Logo hoje que não dava jeito nenhum!
A nossa cabeça ferve em pensamentos e distracções! Mais duas ou três horas de trabalho. E quando o Sol chega a meio do seu percurso diurno, lá vamos nós outra vez! Quais autómatos sincronizados em intervalos! Puras máquinas! Meter mais um pouco de gasolina no motor; lenha no forno; comida no estômago; dar água ao cão, ao gato, aos pássaros do vizinho! Tiramos daqui, pomos dali, com o cheiro dos fritos do almoço entranhado nos trapos que envergámos e, voltamos a voltar para mais duas ou três horas de produtividade!
Num frenesim abastecemos calorias, com um doce ou salgado que a dieta nos proíbe mas a gula não resiste e passadas as duas ou três horas retomamos ao ponto de partida. Mais trânsito! Mais escolas e colégios e avós babados! Mais transportes, engarrafamentos e desastres! Mais compras! Porque já não há pão suficiente para o jantar! Porque se acabou o leite ao pequeno-almoço! Porque já não temos tabaco! Porque ainda não lemos nenhum jornal do dia! Porque é dia dos amigos irem jantar lá a casa (...) precisamos de vinho!
Se contarmos bem, o compasso repete-se. São mais duas ou três horas até nos sentarmos para jantar. E mais duas ou três horas até vermos de novo a cor do leito. Tempos cronometrados quase ao segundo, sempre a duas ou três horas, dia a dia, semana a semana, mês a mês, ano a ano. Sempre duas a três horas frenéticas!
Não admira que estejamos gastos, cansados e loucos. Somos meros operários com movimentos repetitivos. Sofremos já de um qualquer síndrome à escolha. Não alimentamos sentimentos. Não investimos em relações. Definitivamente, puros autómatos! E queremos nós educar os nossos filhos! E prestar auxílio a quem dele necessite! E ter práticas ecológicas nem que seja só para dar o exemplo! Assim, enquanto os dias não passarem de uma sucessão de acontecimentos repetidos, não me parece que seja possível a harmonia necessária para o bem-estar de todos.
Quando o homem deixar de gostar de brincar aos robots e der valor ao ócio e ao lazer, não como luxo disponível apenas a alguns, mas como necessidade básica. Quando os dias passarem a ser surpresas imprevistas e agradáveis. Quando já não houver automatismo, talvez então sejamos felizes!
cdjsp