Crónicas : 

SEGUNDA CRÔNICA DE NATAL

 
"Hoje à noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente."

- Vinícius de Moraes, Poema de Natal -

Meus natais nunca foram felizes. Sempre tive tudo, é verdade. Mas jamais me apeteceram as festas natalinas.
Como já disse numa crônica anterior, nessas ocasiões eu me trancava no quarto. E era um deus-nos-acuda pra me tirarem de lá. Não queria comer, não queria presentes, não queria nada. Queria ficar a sós comigo mesmo. E eu tinha apenas seis anos.
Aos sete, por causa desse meu jeito, minha mãe levou-me ao psicanalista. Mas eu não falava com ele. Na mesa do consultório, eu improvisava um campo de futebol de botão e ele ficava apenas me olhando, enquanto eu imaginava um estádio lotado e os craques do meu tempo fazendo mágica com a bola nos pés.
Quando fiz dezoito anos, respirei aliviado. Não tinha mais necessidade de ficar em casa, olhando a mesa farta de comida. É verdade que bem antes da maioridade eu já não ficava em casa, já demonstrando um certo gosto pelo álcool. Tinha passado dois anos interno entre os beneditinos. Quando saí, descontei tudo. Sempre fui de exageros. Até no exercício de amar. Hoje entendo porque sofro tanto.
Já mais maduro e jornalista, fui escolhido para fazer uma reportagem de natal numa favela.
Vibrei com a pauta.
Antes da meia-noite, lá fui eu, acompanhado do repórter-fotográfico Tarcísio Mota, meu fiel companheiro por andanças neste mundo-de meu-deus.
Foi na favela Ordem e Progresso, em Vila Prudente. A comunidade já nos esperava. Havia uma mesa enorme, coberta de papel crepom, ao ar livre. Uma senhora negra, com uma criança no colo, recebeu-me com um beijo na face. Depois,levou-me até o seu barraco e me deu um copo de cachaça. Abriu uma garrafa de cerveja e começou a me contar sobre a rotina da favela.
A cerveja e a cachaça me foram servidas em canecas de alumínio. Nunca vi tanto asseio como naquele barraco humilde. Barraco humilde é redundância, né? Mas lá havia um presépio, feito de papelão. Com tudo o que há num presépio: a Virgem, o Carpinteiro,o Menino. Os pastores, os bichos. Os reis, com seus presentes: o incenso, simbolizando a divindade; o ouro, a realeza; e a mirra, a paixão anunciada. E havia também o anjo, em cima do telhado da estrebaria, com a faixa: "Glória a Deus nas alturas."
Quando saímos para a rua, na hora da ceia, a batucada comia solta. Algumas pessoas já estavam bêbadas. Mas era uma bebedeira santa e feliz.Uma bebedeira de quem sofria o ano inteiro e, naquele momento, tinha um momento santo de felicidade. Por dever de ofício, eu não podia ficar bêbado, embora tivesse vontade. Uma menina me chamou de menino bonito. E acho que eu era mesmo.
Serviram frango assado, porque não havia dinheiro para o peru, farofa e muita maionese com batatas, porque entope mais depressa. Pobre adora maionese.
As crianças se contentavam com bolas de futebol de plástico e bonecas baratas, oferecidas por um empresário da região. O olhar do Menino Jesus estava no olhar de todas aquelas crianças. A pureza da Virgem e a humildade do Carpinteiro habitavam nas mulheres e nos homens. E eu, que nunca cri no Natal, senti uma coisa na minha garganta. Meu amigo fotógrafo, olhou para mim e brincou:
- O repórter duro está chorando?
Não quis dar o braço a torcer e respondi que talvez fosse efeito da bebida.Mas não era.
E comecei a puxar da memória os natais antigos em família. Até constatar que ali, naquela favela, eu vivi e passei o único Natal feliz. O único - até hoje.
______________
júlio


Júlio Saraiva

 
Autor
Julio Saraiva
 
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1969
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Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 23/12/2010 13:41  Atualizado: 23/12/2010 13:41
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: SEGUNDA CRÔNICA DE NATAL para ju peste da saraiva
tu és,meu peste,de um modo que não sei explicar,alguém da minha "família".por isso,presumo que irás passar o natal,de um estranho modo que não sei explicar,sozinho e comigo simultaneamente.isto independentemente de quantas mais pessoas (ou por momentos, nenhuma )também estiverem presentes.

de repórter duro tens apenas uma costela.ou duas,vá.de resto tudo em ti é sensibilidade e percepção.sofres,como é evidente.tanto quanto sentes.

este ano vais ter uma karlinha também por aí por perto a dar-te o carinho que tanto precisas.fico feliz por isso.muito feliz.
não bebas tanto.se ajuda num momento,piora noutro,como já deves ter percebido.

força para sentir tudo,pestinha.muita força.

um beijo.

e escreve/publica aqui também os teus poemas sff.eles são precisos AQUI.aqui.e nem me perguntes porquê.eu só sei que sei. porque sim.não temos de saber explicar tudo.






Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/12/2010 14:51  Atualizado: 23/12/2010 14:56
 Re: SEGUNDA CRÔNICA DE NATAL p/ Julio Saraiva
Julio Saraiva,

Eu não te conheço tanto assim, pra ficar condicionando-o em elogios e frequentes inserções à pauta dos homens verdadeiros.
Ora, não precisa das minhas palavras, pra edificar(em)-te, assim.
Aqui, vc tem um cara que te quer bem.
que te entende à raiva contida(digo por questão literária a este sítio).
tem aqui, também, um admirador dos teus escritos, que, como já te disse, e repito: é de cunho real e verdadeiro. e: bem, feito. sim..

Se este foi o teu melhor natal, talvez tenha sido, pois(se entendi um pouco do texto), vc lá, se deixou.
vc entregou o teu lado guardado, e deixou-se em festa..
e não importa o lugar que te tenha sido.
apenas,
lhe valeu o lado humano que tão bem, o qualifica.

e, não concordo com a resposta ao comentário da Alexis, a respeito de não gostarem do que vc escreve.

pois,
vc é um Gigante por aqui, e acho, acredito piamente, que:

vc, também é grande, onde quer que esteja.

Um Abraço!!
e. apenas te digo:

continue.e: assim/sempre!!
(eu acompanho daqui, ehehe)


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/12/2010 15:01  Atualizado: 23/12/2010 15:01
 Re: SEGUNDA CRÔNICA DE NATAL
Bonito Julio, confesso que me emocionei existem coisas na vida que realmente nos entristecem, ver um idoso abandonado, ou uma criança sem brinquedo, por mais que a vida nos marque a sempre um coração que chora.

Abraço Julio felicidades


Enviado por Tópico
DianaBalis
Publicado: 23/12/2010 21:46  Atualizado: 23/12/2010 21:46
Membro de honra
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Localidade: Rio de Janeiro
Mensagens: 535
 Re: SEGUNDA CRÔNICA DE NATAL
Julio, já tive alunos que só iam a escola, para comerem as merendas, e quando acaba o recreio, fugiam, antes de me dizerem tchau. Desejo a você muito amor, paz e realizações em 2011,quem sabe nos veremos? Você passeando no sonhado Rio eu em São Paulo? A vida é um eterna ternura e também amizades. Beijos, que seja feliz sempre, com quem desejar e a Nossa Senhora da Aparecida olhe por você.beijos da amiga Gi


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 24/12/2010 00:30  Atualizado: 24/12/2010 00:30
 Re: SEGUNDA CRÔNICA DE NATAL
Cá vou lendo as suas crónicas, já que os poemas vão rareando, ultimamente. Mas há ainda muitos poemas seus, publicados aqui no Luso, que quem quiser pode ler, e aprender, aprender sempre.
Como deixei de frequentar o Facebook, para poemas novos, lá vou passando pelo Currupião.
Quanto aos Natais, não falo, ou melhor, gostaria de poder sentir esse espírito natalício todos os dias, mas sem a carga de consumismo exacerbado que contagia tanta gente, quando ao lado, outros, tantos outros mal conseguem sobreviver.
Boas-Festas para si e para os seus, são os meus votos.

DM