Paulo Themudo: a criança na demanda da cor.
Muitos dos autores não têm, e muitos destes, muito certamente, nunca terão acesso aos meios de comunicação social, sobretudo os da especialidade, para que as suas criações literárias sejam objecto de fortuna crítica. Sendo consensual que a Internet abriu vias para a disseminação de tudo o que é gerado, desde o simples desabafo até à obra literária propriamente dita, certo é, também, e a meu ver, que o sentir do papel, o cheiro à tinta, a visualização do caractere impresso causam uma outra, muito diversa sensação.
Opinar sobre um livro, ou um conjunto de títulos, é algo que considero essencial como leitor, mas, também, como autor não só porque, na primeira condição, esse ou esses tomos foram editados e se tornaram meus, como, também, na segunda condição, dessa forma ter acesso ao que outros pensam sobre o que criei.
Assim, sendo meus, possuindo-os, sobre estes teço as considerações que bem entender. E é exactamente isso o que pretendo fazer sobre o que li até à data da autoria de Paulo Themudo, bem como sobre outros autores que tenho vindo a acompanhar ao longo do tempo.
Tal como Ezra Pound, sobre este autor em concreto, Paulo Themudo, digo que:
“Quando um autor consegue conservar a sua integridade, seja por que meio for, sou da opinião de que teremos de nos sentir agradecidos.” (1)
Com esta frase de Ezra Pound inicio de facto este pequeno artigo sobre Paulo Themudo, pintor e poeta, que leio há um bom par de anos, primeiro através dos grupos na Internet, e, depois em livro, e do qual já tive a possibilidade de apresentar, prefaciar e editar, sempre sob o signo do número dois, isto é: por duas vezes em todas as três circunstâncias antes mencionadas.
A simetria do número, embora esta coincidência tenha que ver com a altura em que escrevo o presente, também está intimamente ligada à própria origem da obra deste autor, do qual conheço quatro títulos, a saber:
“Fui... o que já não sou!...” (Edium Editores, 2008);
“Devir de Vir” (Edium Editores, 2009);
“Um Punhado de Sombras” (Temas Originais, 2009);
e “Silêncio Nu” (Temas Originais, 2010).
Destes títulos apresentei os dois primeiros, prefaciei o primeiro e terceiro e foram levados à estampa os terceiro e quarto pela chancela da qual sou um dos editores.
A citação de Ezra Pound que acima utilizei tem tudo que ver com o percurso último deste autor (desconheço as suas obras anteriores: “Repousadas mãos que sentem”, Corpos Editora, 2006; e “Silêncio transparente do meu corpo”, Magna Editora, 2007).
Há uma deriva consciente e, por isso, consistente. O signo mais forte deste autor é: “criança”; palavra que nos surge e, mesmo quando não é explícita, nos é sugerida, uma criança que procura, que viaja através do espectro, vinda das tonalidades de cinza até à possível revelação da cor ou, se assim pretendermos, até à possível decifração do porquê do espanto.
Quando, em finais de Outubro de 2007, escrevi num blogue, que tinha fim anunciado, feito para registro diário no decurso do meu quadragésimo ano de vida, o seguinte:
“estamos perante um caso raro de sensibilidade, de capacidade de nos pintar, talvez contaminado por esta outra sua vertente artística, os sentimentos, as sensações, mas num espaço, num cenário.
As suas palavras desfilam perante nós como se fossem traços, delineando primeiramente o palco, a moldura, a tela onde as diversas sonoridades, matizes vão adquirindo forma cada mais definida.
E há a gestação de um sereno movimento, um leve abrir de asas ou o jogo de luzes que nos desvia o olhar, conduzindo-o por um rumo pré-determinado.
Agora, que o quadro, o poema cessa com a derradeira palavra, resta-nos esta estranha sensação de termos estado lá dentro, naquele espaço, com aquelas sensações que não sendo nossas, as sentimos como tal.”;
desconhecia que tal desiderato seria mantido incólume através do seu trajecto em livro até à data.
A estas características, ado uma outra que referi aquando da apresentação do seu “Fui... o que já não sou!...”, primeira obra de sempre que eu apresentei, e que é a seguinte: “um livro é como uma casa”. Mal sabia que Paulo Themudo também se manteria fiel a essa sua morada.
Tal percepção tornou-se mais nítida quando em “Silêncio Nu”, sua última obra, o autor inaugura esse título com um poema titulado: “Prefaciando-me”, onde, logo no início, escreve:
“Prefaciando-me seria como construir uma casa”. (2)
Este “seria”, mesmo distanciando a coisa como objecto, tem em si a substância essencial, porque presente na memória, de ser algo relevante para quem escreve e, naturalmente, por extensão, a mesma condição possa adquirir para quem lê.
Estendo este sulco mais como um dizer que um novo passo nasce, um passo que preconiza o advento de facto da luminosidade, de uma saída das tonalidades de cinza a que o autor, talvez em catarse, se submeteu nos livros anteriores. Repare-se que o volume antecedente se titulava: “Um Punhado de Sombras”.
Ou seja: o autor entendia que ainda os vestígios concretos necessitavam de ser objecto de depuração, pelo que o uso do condicional “seria” previne o leitor para o possível surgimento dessas marcas ancestrais.
Mas comecemos pelo início, pelo “Fui... o que já não sou!...” que, assim, sempre se pode compreender a importância do número no desvelar do fazer obra de Paulo Themudo.
Nesse volume, o poeta insere um conjunto composto por trinta e quatro poemas. Atendendo que o mesmo é titulado por dois fragmentos, um convocando o passado e o outro chamando-nos para o presente, certamente que outros dois seriam os signos a serem descobertos no corpo poético.
No entanto, o poeta não nos revela no imediato o signo relevante do presente, mas, na tal exactidão que nos sugere o título da obra, o signo representante do passado surge, sendo a tal palavra que antes referi: “criança”, que nos é trazida exactamente dezassete vezes, isto é: quantidade que corresponde a metade do número de poemas.
Teremos então de aguardar pelo segundo título, “Devir de Vir” para que o outro signo, do qual já se encontravam vestígios na obra anterior, para que este se nos revele.
Como é sabido, devir significa a passagem da potência ao acto, isto segundo a escolástica, que Hegel a tinha como representativa da superação dos opostos. Talvez não seja o acto em si a revelar-se, mas o signo do agente que actua sobre o real, sobre as coisas, neste caso em concreto deparamo-nos com a palavra: “vento” que, curiosamente, ou, muito provavelmente talvez não, nos aparece, também, dezassete vezes, isto é: na mesma quantidade da palavra “criança” no volume anterior.
Em suma: tal como nos ensina a escolástica, após a compreensão da potência, do que tem qualidade sem si mesmo para ser semente de acto, eclode o mecanismo capaz de despoletar o acto.
O vento transforma a pedra com a lentidão própria do tempo, cinzela-a procurando a forma outra que se oculta na pedra. Mas, enquanto labuta nessa paciente indagação, liberta o pó, pó esse que se vai mostrar como sombras, “Um Punhado de Sombras” na mão do poeta.
Mas, tal como a flor sabe da semente que não pode negar, o vento sabe da criança que o gerou pelo que, tal como escreve o poeta:
“Vem, a criança, eterna em mim, deixar-me, um punhado de tempo...
Um punhado de vidas...
Um punhado de sombras!!!...” (3)
Toda a palavra em poesia procura a pátria de onde nasceu, o silêncio. Não é pois de estranhar que também aqui o poeta busque esse mesmo silêncio, mas um silêncio puro porque nu, título da sua mais recente obra: “Silêncio Nu”, talvez terminal da sua viagem na demanda da possibilidade de cor, onde o poeta escreve, “Debruçado no Silêncio”, que:
“à criança voltei na despedida, as marcas de um homem ainda me açoitam todos os dias, não sei mais viver terreno, a vida evita no corredor da morte um oxigénio perfeito de sentimentos, dei e entreguei, rosas, lírios debochando satisfeitos, cigano das palavras troquei-me sem medo, pequei visitando os altares das minhas inocentes aventuras, vi da cal e da pedra construir uma morada desfeita, com gritos de dor, minha mãe chorando a um canto, os olhos desfeitos de medo e dor, o homem quis da sua maturidade outro lugar para crescer...” (4)
Esse outro lugar para crescer, feito porque conquistado pela maturidade, é o lugar da palavra em poema, lugar onde nasceu e lugar onde se recolhe, o silêncio.
Xavier Zarco
(1) POUND, Ezra – Ensaios, Editora Pergaminho, Lisboa, 1994, P. 83.
(2) THEMUDO, Paulo – Silêncio Nu, Temas Originais, Coimbra, 2010, P. 7.
(3) THEMUDO, Paulo – Um Punhado de Sombras, Temas Originais, Coimbra, 2009, P. 62.
(4) THEMUDO, Paulo – Silêncio Nu, Temas Originais, Coimbra, 2010, P. 25.