Ontem morri...
Mas, não foi como das outras vezes...
Ontem morri mesmo...
Foi diferente, foi humano...
Ontem morri e hoje não renasci.
Tomei a pílula da sanidade, montei o unicórnio dourado,
subornei a morte e fui ao inferno.
Contudo, nada tinha mudado desde da última vez que lá
estive...
Continuava frio e fedia a cadáveres marcados pelo
arrependimento.
E a música... A música era sempre a mesma. Sempre aquele
som agudo da dor cantado em uníssono.
Até o bilhete que usei para entrar da primeira vez era o
mesmo.
O porteiro era o mesmo...
O diabo também não tinha mudado e usava a mesma roupa...
Estava tudo igual desde que deixei lá a alma.
Porém, já não sentia aquele arrepio que me gelava os ossos.
Desta vez sentia calor...
Não o calor dos sentimentos e das emoções, mas o calor do
pecado.
Ontem ardi...
Ontem paguei o imposto por viver e amar.
Ontem morri...
Mas não foi como das outras vezes...
Talvez o diabo soubesse porquê...
Tentei encontra-lo e, pelo caminho, encontrei um anão surdo,
que pedia esmola enquanto tocava flauta mágica.
Tivemos uma conversa agradável e no fim, ele disse-me o que
eu queria saber. Disse que podia encontrar o diabo perto do
infinito. Então, fui em direcção ao mesmo...
A viagem foi atribulada, mas, após uma eternidade e alguns
segundos, lá cheguei.
Por fim, lá estava eu. Sozinho, amargurado e frustrado no
corredor da solidão à espera de nada enquanto o tempo me corrompia.
Subitamente, uma porta abriu!
Era o diabo.
Lentamente olhou para mim e sorriu.
Entra! Disse ele.
Então, na ânsia de respostas, levantei-me, e ao passar pela
porta reparei numa placa velha e gasta, que lá estava.
Dizia, Bem-vindo...
Ontem morri...
Ontem morri e, hoje, não renasci.
Excerto do livro Alma em Piano, Carlos Leite