No ritual das horas Januário encontrava-se sentado na pedra que tinha a forma da sua sombra, gravada na memória, as águas que os olhos do homem vertiam todos os dias com os olhos secos.
Nesse dia um pouco antes de a aurora acordar, sentiu uns passos serenos a aproximarem-se, um vulto que se sentava a escassos metros de si. O silêncio fazia-lhes companhia, Januário não erguera sequer o olhar. Na torre da igreja tocava agora o sino, seis badaladas que ele conhecia de cor…depois o silêncio!
As gotas da chuva caíam pelos corpos paralisados, imóveis, quase como estatuas, homens de pedra. Com o rosto vestido de pregas onduladas do destino, o vento parecia apaziguar as mentes que em consonância se alimentavam das correntes do rio, hoje agitadas.
Um dos rostos era ainda poupado pelo tempo, um ar franzino, os olhos, os olhos bebiam curiosidade, mas a boca não ousava movimentar-se… a mente vociferava silêncios ao ritmo da agitação das ondas, um furação em estado de ebulição.
Januário levantou-se.
Acertou o passo com a sombra e caminhou, devagar, lentamente como sempre fazia, com as mãos nos bolsos a alma enrolada no passado e o sorriso prolongado para ofertar aos que lhe diziam “Bom dia”.
Para trás ficou o outro rosto, hirto…beijou a luz que nascera oculta pelas nuvens e avançou até à margem do Tejo, deixou que as águas tocassem os pés já encharcados da chuva…os transeuntes observavam esta estranha figura, num dia que o frio fazia encolher todos os poros da pele. Depois retirou os sapatos, as meias, enrolo-as nos recantos dos mesmos, com um em cada mão, caminhou…caminhou ao mesmo tempo que assobiava uma valsa, balançava o corpo e o olhar estava pregado ao céu, por onde desciam as gotas da chuva cada vez mais grossas…
Na verdade o caminho era curto, pois a sua morada era mesmo do outro lado da estrada, na avenida onde o movimento da manhã era já visível e o frenesim dos automóveis um ruído conhecido pelos seus ouvidos, que no êxtase do momento tudo parecia indiferente. Já junto à entrada do prédio cruzou-se com a vizinha do quinto esquerdo, que tentava equilibra-se nos saltos erguidos às nuvens, balbuciava-se como que um artista em numero arriscado na corda bamba. Artur continuava com o seu cântico nos lábios e vociferou:
-Booommm diiiia!
Com uma voz muito rouca quase inaudível e com o ar esbugalhado a jovem mulher respondeu:
-Bom dia, quase não o reconhecia - avançou pois Artur nem sequer mudou a forma de andar, com um ar atómico olhando de soslaio ela quase que esbarrava no poste que habitava a rua desde sempre.
Perante a porta do quarto esquerdo, onde habitava, Artur meteu a mão ao bolso e foi nesse momento que se lembrou que saíra sem nada, as chaves da porta haviam ficado em casa, tocou a campainha por três vezes e do lado de lá da porta escutou uns passos apressados.
A porta abriu-se:
-Que te aconteceu, julguei-te ainda deitado, olha para… não teve tempo de continuar o homem beijou-lhe a testa…
-Bom dia, o sol hoje vai fazer parte da minha vida! – Encaminhou-se para o quarto e a tia que não o reconhecia nesta vertente manteve-se estática durante uns minutos na vã esperança de entender o que os seus olhos acabavam de ver…
Palhaço que não ria (I)
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Ana Coelho
Os meus sonhos nunca dormem, sossegam somente por vagas horas quando as nuvens se encostam ao vento.
Os meus pensamentos são acasos que me chegam em relâmpagos, caem no papel em obediência à mente...