não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
o mau tempo de hoje. é dezembro – o frio que está pelos pés. mistura-se com este que me esfria as mãos – já não tenho forma de trabalhar as palavras com calor – se fosse ferreiro. temperava os adjectivos com tenazes. nas brasas. no fogo “que arde sem se ver”. com o maço da minha vida. com batimentos certos. ao compasso do coração: pum. pum. pum – firme – certos dias parecem-me os passos de alguém que regressa do meu passado – em cima dele. do lado direito. mesmo ao lado da veia cava. construí um banco de ferro com todas as memórias que tenho – quando quero aliviar o peso da trouxa de palavras que trago na cabeça. sento-as. e lá sossegam – já tenho pouco tempo para perder o corpo – envelheceu. num tempo que verdadeiramente nunca foi meu – agora. espero companhia. ninguém regressa. cada vez estou mais só – do lado esquerdo uma mesa de pau-santo enfeitada com fotos a preto e branco – entre o banco e a mesa uma corda esticada segura um tipo de lençol rendado. tem figuras de santos desenhados a fio de ouro com crianças pela mão – ao centro. em fio de seda preta. o cálice sagrado da vida – é neste que misturo o sangue e as lágrimas que guardei na palma da mão – é tudo que tenho da vida. umas quantas lágrimas tingidas de vermelho ainda vivo – sei. sei que será este tule que um dia cobrirá o meu último suspiro – também eu terei uma foto na mesa e uma coroa de flores com duas fitas negras a dizer – saudade eterna – mas o coração ainda bate. bate. bate – silêncio – talvez a vida pare a qualquer momento – escuto – fico com medo que o silêncio fique… assim como todos os silêncios. vazio. sem. sem gente sentada. sem futuro. sem olhos negros. sem língua. sem lágrimas e nem vento. nem brisa. nem quente. nem nunca. ninguém sussurra nestes ouvidos que ainda continuam a ouvir o bater do coração – é dezembro. e o dezembro traz sempre o inverno – ainda me lembro de ser natal em dezembro e não estar só.