Poemas : 

A noite tem pele

 
A noite tem pele, talvez no Inverno tenha rugas, esta história foi contada pelo patriarca Jacinto ás crianças do acampamento.
- A noite é escura como a nossa pele dizia ele olhando o pequeno João o mais novo dos ciganos.
- A noite não gosta de tomar banho, é como os ciganos, ria uma cigana gorda batendo com os pés no círculo da fogueira acesa.
- Conte a história da noite!
- Já contei vezes de perder a conta.
- Você conta sempre diferente.
- Conto se comeres o caldo e não esperneares.
- Como tudo.
- Bem; era uma vez uma rapariga bonita como o sol e que vestia a noite, contavam naquele lugar que ela era a própria noite cobiçada por toda a classe de homens, desde os trovadores, aos negociantes, os homens políticos, os religiosos, todos a desejavam. Desde pequena que estava destinada a um rapaz que tocava a sua viola nas andanças das feiras.
- De que cores eram os olhos dela perguntava a pequena Mariana olhando uma dessas revistas cor-de-rosa que a mãe tinha lá por casa.
- Eram castanhos.
- Castanhos como os olhos das princesas?!
- Castanhos como os olhos da terra que é nossa rainha e que nos dá a água e o fogo, a musica suave e os frutos maduros.
- Jacinto é um poeta comentou um rapaz que construía caixas flamengas.
- Continuando estava ela destinada a ser desposada pelo cigano tocador, o que não era coisa da sua vontade, mas é da nossa tradição.
- E o que é a tradição?
- A tradição é os príncipes casarem com as princesas e os ciganos com as ciganas.
- E qual é a tradição da noite.
- A noite, essa que dizem ser da raça cigana vinha descendo a montanha quando encontrou uma velha, ela sabia que ela tinha o poder de mudar os destinos.
- Ela não ia casar com o cigano trovador? Perguntou Mariana.
- Ia mas o rapaz morreu.
- Morreu?! De que doença?
- Morreu atingido por um raio enquanto tocava debaixo de um castanheiro.
- Nunca mais jogo ás escondidas debaixo da árvore que está perto do rio, o raio pode descobrir-me diz um pequenito com o ranho pendurado no nariz.
- O motivo do raio ter caído é que o anjo que faz os casamentos a olhava a ela tão triste que até parecia que o mundo andava em suas guerras e outros males por causa de viver um amor contrariado. O anjo sabia da tradição e sabia que aquela que pode unir pode também separar. Ter de viver um amor forçado parecia a sua sina para o resto dos dias. Então o anjo foi falar com a morte. A morte esta na sua tenda.
- A morte vive também numa tenda como nós?
- Sim vive numa tenda e é errante como os ciganos.
O anjo foi então falar com a morte.
- Morte preciso de falar contigo!
- Eu não trato de coisas de amor.
- Como sabes tu que o que me trás á tua presença são assuntos do amor.
- Eu tenho também comigo a sabedoria da vida.
- Se tens a sabedoria da vida, deves também conhecer os propósitos do amor.
- Eu conheço a prudência das palavras e ás vezes na boca dos amantes há dizeres imprudentes.
- Que estás tu a dizer?
- Se o amor acontece feliz, dizem que foi a sorte que lhes bateu á porta, se o amor acontece infeliz ou desilude dizem logo que foi o azar, dizem até que o azar casou com a morte. Eu estou presente quando o amor se deixa cair na imprudência de se teimar cego.
- Não te conhecia esses dotes para a filosofia! Mas o que eu te venho pedir é que resolvas este enigma que me trouxe a ti.
- Dizem os homens que eu sou um enigma que eles não conseguem resolver e tu o anjo do amor vens pedir-me a mim que resolva o enigma do amor, por certo tão difícil como o do amor.
- Tu sabes que trago sempre comigo um arco e um punhado de flechas, conheces a minha certeira pontaria... só que eu não consigo unir o que a vontade da tradição quer separar.
- Quem é que quer separar quem?
- Uma rapariga cigana que dizem parecer a própria noite está destinada a casar com um jovem cigano tocador das feiras.
- E ela não quer...
- Não, ela ama um velho artesão.
- Sim!
- Tu podias arranjar uma morte ao rapaz.
- E como posso eu fazer isso?!
- Tu és a morte.
- É verdade mas vai-me faltando imaginação.
- Isso não te falta.
- Na verdade já não acho o trabalho muito divertido.
- Olha! Dá-lhe uma morte num dia em que ele esteja mais inspirado.
E então a morte matou o cigano tocador e pôs-se a dançar flamengo.
- Se eu conseguisse sempre ver morrer alguém feliz, nestes últimos tempos foi uma lista cheia de gente doente, de guerras e lutas entre religiões e etnias, um ver se te avias de desgraças, nem percebo como consigo comer tanto.
De seguida o miúdo com o ranho pendurado no nariz exclama!
- A morte é gorda como a minha avó.
- É gorda e só come porcarias dizia outro miúdo.
- Ó pai Jacinto a morte tem os dentes estragados?
- Deve ter, mas continuando a história pergunto se vocês estão a gostar?


- Sim.
- A morte que sempre aparece em dias cinzentos resolveu que aquele dia em que o rapaz ia morrer seria um dia de sol.
- E depois?!
- Depois vestiu a sua pele de um tecido suave como uma nuvem da manhã e suavemente empurrou o rapaz para debaixo da tal árvore e segredou-lhe ao ouvido:
- Toca uma música alegre. E o rapaz tocou. A sua música era tão surpreendente que o céu exclamou a sua admiração trovejando elogios e foi então que a morte lhe lançou um raio no mesmo modo de quem lança flores ao palco depois da actuação do artista.
- Quando há trovoada é porque Deus comeu feijão pergunta João o mais novo dos ciganos.
- Se ele provasse a feijoada que a minha Mãe faz andava sempre a correr para trás das nuvens.
- Depois cagava os homens todos.
- Mas continue a contar-nos a história!
- Aconteceu pois que mal se soube da morte do rapaz todo o acampamento ficou lavado em lágrimas e num tal pranto que se confundia com a brutalidade de uma praga. Durante a madrugada a rapariga, essa que se pensa ser a noite resolveu fugir. Ora sem que ninguém desconfiasse costumava encontrar-se ela ás escondidas com o velho artesão de nome Jeremias. Fugiu ela deixando atrás de si a marca dos seus pés nus no frio da terra.
- Pai Jacinto quero fazer uma pergunta disse a pequena Mariana com o dedo levantado.
- Faz.
- Porque fugiu ela descalça?
- Talvez não tivesse sapatos.
- Se calhar tinha uns sapatos que lhe apertavam os pés disse em modos de palpite a cigana gorda.
- Ela fugiu descalça para não acordar a família.
- É verdade foi o que se passou mesmo. A moça fugiu pois com o tal do velho artesão, ele fazia sapatos e roupas de pele capazes de aquecer a terra e fez para ela umas roupas abençoadas com o calor do sol. A viagem que eles iam fazer era uma viagem perigosa, não por causa dos bichos selvagens que iam encontrar, não por causa dos salteadores pois eles eram pobres, possuindo apenas o amor que para as pessoas da aldeia era incompreensível. O perigo daquela viagem era o ódio que se tinha acendido na família do rapaz da nossa raça que pretendia castigar a noite essa cigana ainda hoje errante e amaldiçoada.
- Mas é ela que faz dançar o nosso povo diz o rapaz que faz e que toca as caixas flamengas.
- Faz dançar as criaturas e influencia os movimentos da mulher quando vai parir. De repente fez-se uma pausa, uma rapariga cigana que tinha ficado até ao momento calada pergunta se ela a noite era virgem.
- Sim, se não o fosse não podia ser prometida ao cigano bailador.
- Ele não era só tocador?!
- Era tocador e bailador.
- E que aconteceu por ter fugido com o velho artesão?
- O pai do rapaz chamou á sua presença dois rapazes novos e corpulentos, faziam eles contrabando de tabaco e andavam sempre com duas pistolas á cintura, um deles tinha os dentes forrados á ouro e quando ria encadeava os olhos a qualquer que por ali passasse. O pai do rapaz disse numa voz firme e autoritária:
- Procurem o artesão e tragam-no até mim!
- E se a encontrar-mos a ela que fazemos?
- Rasguem-lhes as roupas e tragam-nos nus.
- Com o frio que faz vão ambos morrer falou um dos rapazes.
- Façam o vosso trabalho! Quando estiver feito dou-vos dois sacos de moedas de ouro.
Todo aquele dia andaram á procura deles, levaram pois dois cães do melhor que havia na arte de encontrar. A rapariga e o velho artesão estavam dentro de um buraco de terra e parecia que aquele esconderijo era tão secreto que parecia ate ser desconhecido do mundo. Ao longe ouviam-se os latidos dos cães, de repente o grande buraco de terra iluminou-se e á frente deles apareceu o cigano bailador erguendo os braços ao alto e entoando óles.
- Bons dias senhorita.
- Em nome de Deus vai-te embora.
- Venho em nome de Deus para vos proteger
- Vai-te embora!
- Sei que sois perseguidos, o meu pai enviou dois jovens para que fosseis capturados e trazidos nus á sua presença, eu com a minha musica provocai-lhes tal encantamento que agora seguem eles a estrada do bosque nús como dois parvos da aldeia.
- Porque razão me perdoais!?
- Que crime foi o vosso?
- Talvez o crime de não vos amar, mas o meu coração bate por Jeremias.
- Não me amais, mas não és minha inimiga
- Não sou inimiga de ninguém... que má fortuna a minha. Andar a fugir da própria família e ter agora o destino mais incerto que antes.
- Posso tocar para vós.
- Sabes alguma canção Bretã perguntou Jeremias esfolando uma ovelha que tinham encontrado no bosque quando iam a poucos dias de caminho.
- Conheço esta canção.
E o rapaz tocou uma música Bretã e o velho artesão ia batendo com os dedos na terra e as palavras saíam como fumo das chaminés: ela é a noite e eu sou o seu velho trovador. E o refrão repetia-se. A seguir ouviu-se um barulho de um ramo a mexer-se. A rapariga, o velho artesão e o fantasma em carne e osso do cigano tocador levantaram as cabeças para o céu que se via daquele buraco destapado e viram a sombra de uma raposa a correr. O sol que brilhava fazia reflectir na sua pele a cor vermelha que depois era projectada no tronco das árvores e nas nuvens que deslizavam com o vento dando cor á água e ás canções da infância.
- Hoje aprendi uma canção nova na escola disse a pequena Mariana.
- Que canção aprendeu perguntaram as outras crianças?
- Aprendi aquela que diz assim: a noite estava escura, não havia luar, ouviu-se ao longe um cucu a cantar. O resto já não me lembro.
- Prosseguindo, quando a rapariga e o velho artesão se encontravam no fundo do grande buraco da terra não havia lua.
- Quer dizer que estavam ás escuras atirou á sorte o rapaz cigano que sabia fazer caixas flamengas.
- A luz que havia era a que havia nos olhos dela, a paixão vocês deviam de saber pode destapar toda a escuridão e a lua que não estava visível no céu estava dentro dela assim como um pássaro dentro da liberdade.
- Pai Jacinto quanto tempo estiveram eles na profundeza daquele buraco. Se fosse comigo ficava cheio de medo, podia encontrar uma cobra ou um espírito.
- Se fosse bonito como o cigano tocador.
- Como sabes que o cigano tocador era bonito perguntou o rapaz á pequena Mariana.
- Devia ser, se fosse feio não morria com música.
- E como é que morria?
- Morria a ver a sua cara reflectida no lago, uma cara verde como a de um sapo.
- Há sapos bonitos!
- E há sapos que fumam
- A rapariga, ou aquela que diziam ser a própria noite achava-o a ele muito bonito, mas não é isso o que decide a paixão, o reflexo da água ama o sapo feio porque lhe vê o coração e porque a natureza tem aquele batimento que é a vida.
- A vida é uma mulher?
- É uma feiticeira.
- E que feitiços faz?
- Muda de forma.
- Como?!
- Um dia é homem outro mulher e outro água do mar e outro ainda luz do fogo. Mas seguindo com a nossa história os dois jovens ciganos que tinham sido mandados em perseguição dos dois amantes corriam agora nus por aquele bosque. A sombra deles era visível na pele da raposa. Depois de algumas horas de corrida parece que tomaram noção do estado que a nudez deles evidenciava.
- Que fazemos assim nus?
- Não sei.
- Parece um sonho estranho!
- Que frio!... Acho que vamos morrer.
- Vamos fazer fogo!
- Com o vento que faz não sei se vamos conseguir.
- Enquanto estavam neste diálogo á frente deles estava a raposa com a sua pele vermelha.
- Tirem-me a pele ordenou ela.
- Estamos mesmo doidos, será que foi alguma coisa que comemos.
- Lembro-me de ter comido só uma maça que apanhei no caminho.
- De seguida junto a eles estava uma formosa mulher envolta num manto, eles viram-na a despir-se e a lançar bocados daquele manto para os pés deles. Começaram a vestir o manto, faziam-no de olhos no chão, mal acabaram de se vestir estava ao pé deles uma poça de sangue e não havia nem vestígios de mulher nem de raposa.
- Estou com sede disse um deles.
- Já não tenho água e o rio ainda está longe.
- Podia beber aquela poça de sangue.
- Parece da cor do vinho.
- E eles provaram? Perguntou a cigana gorda
- Provaram.
- E a que é que sabia?
- Um deles disse: sabe a vinho quente. O outro pôs uma ponta do dedo na poça e exclamou:
- É doce!
- Olha agora me lembrei que temos de regressar.
- Não me apetece.
- A mim também não, nem sei o que vamos dizer ao nosso chefe.
- Se contamos aquilo que nos aconteceu não vão acreditar em nós.
- E... se dissermos que fomos apanhados por salteadores que nos levaram o dinheiro e as roupas e que foi um peregrino que seguia em peregrinação á terra santa que nos deu roupas e dinheiro recomendado-nos a estalagem de um amigo.
- Não vão acreditar em nós; os ciganos não são aceites nem nas igrejas, nem nas estalagens.
- Podemos dizer que estávamos disfarçados de religiosos.
- Pois! Nem sabemos o que inventar.
- E se nós entrássemos no acampamento vestidos como leprosos, assim éramos expulsos e podíamos seguir outro rumo nas nossas vidas. Vamos fazer isso?!
- Eu tenho mulher e filhos, sabes, sempre que matei um homem me lembrava que podia estar a matar um pai de família e muitas vezes me lembrava dos meus filhos.
- E nunca recuaste?
- Uma ordem é para ser cumprida, se eu não cumprisse perdia a honra e o respeito da minha família.
- Vamos voltar?!
- Se quiseres ir, tu não tens família, podes seguir outro caminho, posso dizer-lhes que te matei.
- Estavam eles nesta conversa continuava o patriarca, quando ouviram o som das trombetas. Estavam rodeados dos guardas do rei.
- Estão presos disse um rapaz novo que devia ser o comandante.
- Que fizemos nós.
- São ciganos, filhos do diabo.
De seguida um outro soldado segreda algo aos ouvidos do comandante.
- Dizem-me que um de vós matou um homem por não vos querer na sua terra.
- A terra é de Deus.
- Também a vida é de Deus.
- Vocês andam a roubar os pobres camponeses e quando não querem pagar os impostos vocês matam-nos, eu tenho na minha conta muitas mortes, mas quase todas foram para sacar o dinheiro dos ricos e para matar a fome aos filhos.
- Levem-no gritou o chefe deles.
- Que aconteceu ao velho artesão e á rapariga? Pergunta Mariana.
- O velho artesão caiu doente, parece que foi atingido por febres altas, suspeitava-se que a peste o tivesse atacado, durante esse tempo a febre fazia-o delirar. Ao lado dele estava a rapariga com o seu vestido longo e negro, o tocador cigano e descendo vinha a raposa num modo de andar elegante, mal pisou o fundo transformou-se numa mulher, a rapariga reconheceu na mulher a velha que tinha o poder de mudar destinos. Ela voltou por momentos á forma de raposa e ia lambendo a testa do artesão com o propósito de lhe fazer baixar a febre.
- Ele tinha mesmo peste? Perguntou uma rapariga que era irmã do cigano que sabia construir caixas flamengas.
- Julgo que sim respondeu o patriarca.
- E como é que ele apanhou o bicho?
- Talvez alguma ratazana ou algum enfermo com o mesmo mal tivesse estado naquele lugar deixando o cheiro da doença.
- Não sabia que as doenças tinham cheiro! Mas conte! O que aconteceu depois? Ele morreu?!
- Morreu.
- Coitada.
- Pois é, agora estava sozinha, quero dizer que uma parte dela estava sozinha mas por outro lado tinha uma nova família, a velha metamorfoseada de raposa e o cigano bailador que era até aquele momento o seu fantasma protector. Depois da raposa ter arrastado o corpo e ter escavado com as patas uma cova do tamanho de um poço, enterrou o artesão e logo cobriu de terra e humos o lugar. A rapariga estava com ela quando isto se passou e quando a raposa voltou á forma de mulher, ela a convidou a viver na sua companhia e a ser sua aprendiz, lhe ensinaria todas as magias que sabia fazer desde criança. A rapariga que diziam ser a noite perguntou se ela lhe ensinaria a forma de se converter num animal, podia ser um pássaro. A velha que agora se apresentava na sua forma jovem disse-lhe que um pássaro podia ser uma coisa perigosa pois por aquele bosque eram frequentes os caçadores e se ela adoptasse a forma de raposa era mais fácil esquivar-se dos cães e das setas. Contou ainda os seus casos amorosos com os caçadores, eles perseguiam-na como raposa e ela aparecia-lhes como mulher, uma jovem mulher como a água fresca do rio. Depois namorava-os deixando-os loucos e cegos de paixão que se entregavam ás filhas dos reis ou ás estrelas que brilhavam cintilantes no ferro das espadas ou nas gotas de água que caiam da montanha e que na loucura deles pensavam ser uma mulher vestida de terra.
- Quanto tempo viveu a noite com a raposa encantada? Perguntaram todos.
- Viveram juntas alguns anos, não viviam sempre no mesmo sítio.
- E como faziam?
- Umas vezes viviam em buracos que os castores cavavam, outras alturas dentro do tronco de árvores velhas e centenárias, também habitavam celeiros abandonados.
- E onde é que ela aprendia a magia?
- Quando iam á procura de alimento e paravam para comer os animais caçados ou provavam como sobremesa o néctar de certas flores, a mulher assumindo a forma de raposa escrevia com as patas a fórmula das metamorfoses, ela conhecia também a metamorfose das estações.
- A Minha avó diz que faz sol quando devia chover.
- A tua avó é uma metamorfose diz um rapaz
- Olha! Não chames nomes á minha avó que não é para aqui chamada.
- Tenham calma! Estava eu contando o modo como viveram durante certo tempo e como a rapariga aprendia com a velha as artes da magia. Alem da arte da metamorfose ela aprendeu a fazer remédios que tratavam algumas doenças e dentro dos frascos onde se introduziam as substâncias de certas flores ou fungos ou ainda o sumo de certos frutos havia um segredo revelado ao homem pela natureza. Acontece que naquele tempo a igreja perseguia todos aqueles que praticassem a medicina popular eram chamados de bruxos e deitados á fogueira. Muitos anos antes a velha costumava andar nas feiras onde distribuía gratuitamente remédios aos enfermos e vendia compotas que ela confeccionava. Pelas feiras andavam os guardas do rei. Certa ocasião os guardas tentaram prende-la e foi graças á magia da metamorfose que conseguiu escapar. Agora não queria voltar ás feiras pois não queria por em perigo a vida da rapariga cigana que embora estivesse aprendendo as artes da metamorfose ainda não dominava com segurança o processo magico. A rapariga cigana que se dizia ser a noite, essa noite que veste os céus e que se fez mulher graças ao desejo dos homens que pedem ás estrelas a realização dos seus desejos de amor impossível, ela que nascera de um ventre cigano e que descobrira nos olhos de um velho artesão o amor universal que não pode estar sujeito a nenhuma lei olhava o buraco escuro onde ele e a mulher que naquele momento tinha a forma animal da raposa que deitada sobre o corpo dela a aquecia.
- Uma raposa deve ser quente como uma fogueira
- Eu nunca cheguei perto de uma.
- Se chegasses podia morder-te
- Queimar-me é que não.
- Uma raposa pode queimar diz o pequeno João.
- Explica lá desafiaram os outros miúdos em coro.
- Se ela for a raposa cor de fogo.
- A raposa da história parece cor de fogo.
- Se a raposa fosse quente como o fogo ela queimava-se e as princesas não se podem queimar diz a pequena Mariana com aquela sua expressão viva nos olhos.
- A noite não é atingida pelo fogo, ela é como a água diz o miúdo que andava sempre com o ranho pendurado no nariz.
O patriarca cigano resolveu fazer uma pausa pois a noite ia longa e os pequenos precisavam de descansar. No dia seguinte voltou a ele a contar mais um pouco daquela história:
- Enquanto a raposa se enroscava no corpo da rapariga cigana o espírito dela viajava em sonhos por lugares que ela conhecera durante a fuga que empreendera com o velho Jeremias, sonhou que era criança e que o pai a embalava e lhe cantava canções de embalar e ela ria-se quando na aldeia lhe diziam que era parecida com o sol e bonita como ele.
- Ela era filha do sol não era? Perguntou em duvida um rapaz que estava olhando a sua fisga de atirar aos pássaros.
- Era filha do sol que como vocês vão ficar a saber é ourives.
- Porque é que ele é ourives? Perguntaram.
- É ele que faz os colares e as pulseiras de ouro que as mulheres ciganas usam.
- É mesmo assim pai Jacinto? Perguntou Mariana.
- Na verdade é uma lenda cigana.
- O que é uma lenda?
- Uma lenda é a verdade dos sonhos que não acontece sempre na nossa vida.
- A história que nos está a contar é uma lenda.
- O que vos conto é uma verdade guardada à muito tempo na memória dos contadores de histórias, uma história que atravessou os mares, que entrou nas prisões, que apaixonou poetas.
- Conte mais! Pediam os miúdos.
- Tinha chegado aos ouvidos de um dos mais famosos piratas que havia uma criatura que sabia fazer o ouro mais valioso da terra, o sol lançou um dos seus raios ao ar que caindo em cima de uma mulher lhe provocou dores de parto e o nascimento de um rapaz que seria destinado a trabalhar o ouro, ouro que tornaria bonitas todas as mulheres e importantes todos os negociantes cujas roupas fossem bordadas a ouro. O famoso pirata desejava encontrar-se com o ourives para tentar sacar-lhe o que considerava ser o segredo mais valioso e a seguir matá-lo. A rapariga cigana acordou e viu que a raposa ou a mulher velha, ou a mulher nova já não se encontrava ali, levantou-se e andou pelo bosque, andou mais um pouco e presa a uma armadilha estava a raposa que daquela vez não conseguira usar a arte da metamorfose e por isso estava com o pêlo esquartejado pelos ferros afiados da armadilha e a boca jorrava sangue. A rapariga ajoelhou-se e chorou, chorou um choro tão forte que se podia escutar o mais longe possível. Agora estava sozinha naquele bosque, não confiava em homem nenhum, dentro dela havia um desejo de vingança, matar aqueles que tinham perseguido até á exaustão do ódio a sua companheira, a sua raposa e velha sábia que conhecia a natureza dos homens e sabia que um dia não ia escapar da única armadilha onde toda a criatura acaba por cair e que é a morte.
- Foi a morte que pôs lá a armadilha? Perguntaram as crianças.
- Foi a guarda do rei. Nesse dia vestiram a morte e mais tarde haviam de a encontrar.
- A história está a ficar triste lamentava-se a pequena Mariana.
- Quero dizer-vos que embora tivesse perdido a companhia física da velha que tinha o destino de ser raposa e o destino de ser jovem mulher, todas as criaturas daquele bosque, desde o animal feroz ao animal mais dócil se entregaram ao seu serviço para a fazer sentir que o mais duro da vida é como um vento que pode empurrar de novo a alma para uma nova vida desabrochando sempre a flor do amor. A firmeza de ficar de pé, é a prova de que somos resistentes e que a reafirmação da liberdade é uma luta nossa e da natureza.
Enquanto a jovem cigana e conhecida por todas como a mais bela, assim a noite que adormece os homens resolveu ir em viagem os dois ciganos que tinham sido mandados em perseguição da rapariga e do velho tinham conseguido fugir. Ouviram também eles falar do famoso pirata que cobiçava o ouro que diziam ser aquele que sai das mãos do sol e queriam eles fazer um acordo com o tal pirata e sua tripulação. O pirata conhecido com o nome de Vagos costumava parar num bar que se chamava gavião das ondas, bar frequentado por prostitutas, mendigos, nobres que tinham perdido fortunas e que agora exploravam o negócio da prostituição. Os jovens ciganos fugidos da prisão, andavam disfarçados de leprosos para que não fossem reconhecidos. Chegaram ao cais onde ficava situado o tal bar, já sem o disfarce perguntaram quem era o famoso Vagos, o que lhe indicaram uma mesa onde estava ele mais outros da sua guarda jogando á bisca.
- Quem é que quer jogar? Perguntou ele num tom resmungado
- Nós responderam os ciganos que estavam fugidos.
- Tendes dinheiro? Ou querem uma corda á volta do pescoço?
- Temos uma informação.
- Falem!
- Tem que ser em particular.
- Levem-nos ao meu navio, falamos lá, espero que seja uma boa informação. Tomem conta deles!
- Chefe pode ficar descansado disse um deles.
- Eles iam contar o segredo do ouro ao pirata? Perguntou o pequeno João.
- Sim e sabem vocês em troca de quê?
- Não responderam em coro!
- Em troca de uma parte desse ouro... tanto os ciganos como os piratas sabiam da existência do ourives que era o sol na forma humana mas não sabiam onde era a sua morada. Os dois jovens iam inventar que conheciam o sitio e em troca de uma parte do ouro queriam atravessar uma ponta do mar á outra ponta.
- Onde fica a casa do ourives? Perguntou Vagos o pirata aos dois ciganos.
- Só vos dizemos se nos levarem de uma ponta do mar á outra.
- E onde fica isso?
- Queremos ir na direcção de outra vida, o ouro que conseguirmos é para mandar á família e pagar a um padre a absolvição dos nossos crimes.
- Podem lava-los na água, por aqui há muita e é tão salgada como as nossas vidas riu-se ele. Estava a pensar agora como é que eu sei que essa vossa história não é invenção?
- Se não tendes confiança na nossa palavra...
- Sois ciganos
- E vós sois piratas, vos saqueais as coisas do mar.
No bosque continuava a viver a jovem rapariga que tinha feito um juramento de vingança, agora odiava tanto, como tinha amado o velho artesão e a velha raposa que sabia a arte da metamorfose, agora ela que conhecia tão bem aquele bosque tinha um plano para liquidar toda a tropa de caçadores do reino e roubar todos os cobradores de impostos cujo caminho fosse aquele.
- E qual era o plano dela perguntou uma miúda?
- A jovem pensou preparar um perfume cujos ingredientes eram extraídos de um cacto que existia em volta do buraco fundo onde ela continuava a dormir. Enquanto apanhava umas bagas que eram parte do tal cactos, pediu à águia que a alertasse caso aparecesse algum intruso. Ela queria que aquela operação fosse secreta. Ela ia criar o perfume da sedução fatal, depois espalharia o mesmo nas roupas dos soldados dos reis quando andasse a passear pelas feiras. O cheiro daquele perfume a que ela seria imune atrairia quem o cheirasse para o cimo de uma torre onde se atirariam convencidos que se tinham tornado imortais, outros caminhariam na direcção dos poços e convencidos que Deus em pessoa os baptizava se afogariam nas profundas águas. Levou ela mais de dez anos na apurada escolha dos bagos e outros dez na preparação do tal perfume. Logo que o perfume estava pronto a ser usado ela lançou um assobio frio e logo apareceu o seu cavalo selvagem. Partiu ela ainda muito cedo e a dado momento aparecendo dos ramos altos de uma árvore saltou uma figura uma parte era o desenho de um humano em forma de fogo, um fogo de paixão que ao envolve-la a cegou.
- Quem és tu? Que me fizeste?!
- Sou aquele que é parte da tua escuridão e sou a parte da luz que tens em ti. A vingança perde as criaturas.
- E ela ficou muito tempo sem ver?
- Quando fechou os olhos e imaginou que olhava o coração, o que há de mais verdadeiro, os olhos dela abriram-se. Abriram-se os olhos e os braços respondeu o patriarca.
- E depois ela apaixonou-se outra vez?
- Depois ela assumiu a forma do espaço em volta e quando deu conta, já não era mulher, nem animal, a sua metamorfose era ter conseguido ficar noite.
- Olhem as estrelas gritou um miúdo!
- Parecem o ouro que os piratas desejavam.
- E agora a floresta ficou sozinha pergunta Mariana?
- Ela continuava a proteger aquele lugar e quando havia a intenção de destruir aquele sítio os que tentavam ficavam cegos e não conseguiam descobrir o caminho. Anos mais tarde o rei que governava aquela terra foi derrubado e o povo elegeu um cavaleiro cuja espada era afiada de justiça.
- E os piratas? Perguntaram todos.
- Os piratas ainda navegam, crentes que vão na direcção da casa do ourives que fica situada na mentira dos rapazes ciganos. Na verdade é a loucura que os faz seguir, a loucura e a cobiça e será isso que os irá perder.

lobo

 
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lobodaescrita
 
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