Januário acabara de se sentar na mesma pedra que durante anos com ele escutava o silêncio do rio. Era ali, que todas as manhãs recebia o nascer do sol e com ele as vestes de mais um dia, igual a todos os que deixou para trás.
Um homem, que todas as noites pintava o rosto, subia ao palco e oferecia gargalhadas, as crianças vibravam, os adultos perdiam a noção do tempo envolvidos nas hilariantes palavras que de improviso o palhaço largava entre tombos e cambalhotas atribuladas.
O sol despia os raios nas serenas águas a deslizar pelas margens que agora estavam adornadas por cimento, construção humanas que reinventaram a aparência desta paisagem. A transparência do rio já não era hoje o que foi outrora, mas os sons eram os mesmos, melodia que conhecia os timbres do coração deste solitário homem. Quarenta anos, são muitos dias muitas horas no mesmo navegar.
A imagem de Elvira estava gravada nas correntes do rio, assim como as últimas palavras que trocaram com os rostos salgados e os lábios húmidos de um longo beijo…
- Porque partes tu?...Fica, é aqui que o futuro te espera e a felicidade está esboçada nos rostos rubros ciosos de partilha.
- Do lado de lá do oceano estarei sempre a escutar os mesmos sons do mar, contemplarei os abraços fogosos da areia nos dias de tempestade marítima. Olharei o sol nascente e o teu sorriso será o alimento do meu destino. – Respondeu Elvira escondendo no sótão da alma a tristeza e revolta desta viragem do destino.
- Não voltarás, e eu não irei…é aqui que distribuo felicidade, é aqui que tenho o coração acorrentado…o destino é um traço que não se apagará mas que será ténue em todas as auroras, o teu rosto será a utopia de um mero vendedor de sonhos que o seu sonho não pode definir…
A jovem apertou ainda com mais força as mãos do seu amado, beijo-lhe os lábios…e correu, correu sem deixar que o olhar voltasse atrás!
Estas imagens eram a película infindável dentro do âmago de Januário que cumpria o ritual da solidão em todos os segundos da sua existência desde o tempo que o vento lhe limpou as faces. Não chorava…mas também não ria, havia esquecido como rasgar os lábios em sã alegria.
Contudo assim que o seu olhar encontrava uma imagem humana, sorria, vociferava palavras de ânimo e atirava aos amigos os melhores gestos de felicidade.
Pelas ruas, já se movimentavam os quotidianos do dia, os carros avançavam rapidamente e as pessoas atropelavam a pressa em correrias que Januário conhecia no rigor da sua sensibilidade apurada pelo silêncio que vestia sem urgência…
Ergueu-se.
-Até amanhã! – Vociferou com o olhar voltado ao sol.
Então caminhou em direcção a casa onde iria preparar mais um espectáculo para essa noite…As luzes da ribalta aguardavam mais um rufar dos tambores, os holofotes intensificavam-se em cada cadeira que se preenchia, nenhuma ficava vazia sempre que os seus pés pisavam o palco!
Ana Coelho
Os meus sonhos nunca dormem, sossegam somente por vagas horas quando as nuvens se encostam ao vento.
Os meus pensamentos são acasos que me chegam em relâmpagos, caem no papel em obediência à mente...