Conheci Menotti já passado dos oitenta, por dever profissional. Autor de um clássico da literatura brasileira, Juca Mulato, era o último remanescente da Semana de Arte Moderna de 1922.
Morava num solar na avenida Brasil, esquina com a Rebouças, a poucos metros de onde a sucursal paulista da revista Manchete se instalara, depois que saímos da avenida Europa, por ocasião da casa, um dos imóveis mais suntuosos de São Paulo, ter sido vendida a peso de ouro.
Mas isso não vem ao caso. Em frente à casa onde Menotti morava havia - e há até hoje - uma pequena praça, com um busto esculpido em bronze de sua mulher, a pianista Antonieta Rudge, onde o poeta ia colocar flores todas as tardes. Após a morte de Antonieta, Menotti esclerosou de vez. Mas sempre amparado pela enteada, dona Helena, filha de Antonieta e de Charles Miller, o homem que trouxe o futebol para o Brasil. Dona Helena era uma aristrocrata, ao contrário do poeta que adorava peidar na sala, pensando que ninguém ouvisse.Bem verdade, Menotti já estava surdo.
Mas aos oitenta anos a gente pode tudo. Menotti, já na casa dos noventa, perdera a noção do tempo. Com a desaprovação de dona Helena, todas às sextas-feiras eu saía da redação da Manchete, no fim da tarde, e ia buscá-lo. Atravessava com ele a complicadíssima avenida Rebouças, com seu trânsito infernal, para levá-lo à uma padaria, na rua Pinheiros. Ali, o poeta, pintor, escultor e jornalista, bebia comigo uma dose de uísque e fumava. Dona Helena, que hoje já deve também descansar no céu, ralhava comigo:
- Mas ele não pode - dizia.
E eu retrucava:
- Aos noventa anos a gente pode tudo.
Um dia Menotti me deu um livro seu, documento que não abro mão nunca. Além do autógrafo, fez a caneta bic um auto-retrato. Pouco tempo depois, fui ao seu velório, no salão nobre da Academia Paulista de Letras. Lembrei-me dele contando dos seus amigos modernistas de 1922. Falava-me de todos. E apontando para um dos quadros que pintou, mostrou-me o poeta Guilherme de Almeida:
- Você tem visto o Guilherme? É um grande sonetista.
Eu nunca vi Guilherme de Almeida na minha vida. Mas Menotti achava que eu tinha visto. A idade tem essas coisas. Na hora que lhe fecharam o caixão, a escritora Lygia Fagundes Telles se deitou no meu ombro e disse:
- Era um fidalgo.
Eu concordei e disse comigo:
- Mas você não ouviu os peidos na biblioteca.
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júlio
Júlio Saraiva