Ishmael não tirava os olhos dela, desde que comprou a máquina fotográfica numa loja de móveis usados ele passou a admirá-la imaginando os momentos que registraria. Aprendeu a seguir sua intuição com Seniste, sua inesquecível tutora dos prazeres femininos. Seniste o ensinou que para qualquer coisa nesta vida ser bem feita primeiro se deve sentir, entrar em sintonia com o que se está buscando. Foi assim que o ensinou a como amar uma mulher, a importância de cada toque, a suavidade de cada movimento, deixar-se guiar por ondas de entrega mútua. Foi pensando nisso que passou a registrar os momentos de seus dias, bem acompanhado por uma trilha sonora que incluía Garage A Trois, Nick Drake, Tindersticks e Radiohead no álbum 'Hail to the Thief', entre outros. Com o tempo entendeu que suas fotos em preto e branco o agradavam mais. E nesse tempo encontrou Shérida.
II
Olá, sou o menino Casimiro, tenho 12 anos e hoje eu moro numa vila perto da cidade. Todo mundo aqui se conhece e sabe da vida um dos outro, minha irmã Camila, dizem por aí, foi molestada pelo Pé Redondo, eu não sei se acredito. Ela está de cama desde que voltou do baile que não existe mais, ela também fala umas coisas estranhas. Minha tia Seniste disse que assim como separa o café do leite, o Pé Redondo separa você de você mesmo! - ela não devia dizer umas coisa dessa na frente de um menino eu acho. Foi depois do primeiro baile da vida dela, nunca tinha visto minha maninha tão feliz.
III
Seniste entendia em silêncio o mistério da morte, foi assim desde criança quando sentiu pela primeira vez sua presença. Acreditava que vivia plenamente porque tinha a consciência da morte, para ela, a morte assim como a vida, estavam presentes em todos os momentos. E tudo que estava vivo também estava morto, uma condição de vida e uma condição de morte, como numa moeda de duas faces. A morte que recebe o tempo a cada segundo numa fome infindável. Quando está num ponto alto e fita o horizonte fita também a vida e o que está às suas costas neste exato momento é a morte, pois é escuridão o que não se está vendo, um instante pra vida outro pra morte. Assim caminha com a vida e caminha com a morte valorizando cada único instante em vida, instante em morte.
IV
Para Shérida não importavam os lugares vazios no ônibus que pegava diariamente, buscava uma posição que trouxesse uma janela de fácil abertura. Assim, envolvida com o vento que a velocidade de sua viagem produzia, deixava-se. Longe dos fortes perfumes, de olhares de cobiça e incessantes provocações, deixava-se. E para longe dali, nos pontos distantes de movimentos vagarosos, mantinha-se. No topo da mais longínqua árvore, no cume da mais alta montanha ou de cima da mais linda nuvem, mantinha-se. Em lugares calmos de silêncio e claro, de descanso para conversas suaves e encontros de olhares gêmeos, encontrava-se. E lá de cima da mais alta nuvem, do cume da mais longínqua montanha ou no topo da mais linda árvore, buscava pontos distantes de movimentos vagarosos, e assim encontrava um ônibus, e no ônibus encontrava-se. No olhar de volta, encontrava-se. Com olhos gritando em silêncio por olhares gêmeos, mantinha-se.
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