Acordei da última noite neste desejo, nesta imposição inquieta e invasora que me delimitava na cama, repetindo-se pela maré vazia da rotina diária onde ainda mal, este que vos fala, despertava…
«Assaltar um banco e escrever um romance nas notas roubadas»
Ecoam os sinos da igreja, flores canibais dançando os sulcos da minha estufa romântica. Ressoa o limiar, levanto-me culpável... Arribo malfazejo na minha maior catedral matutina, troco passos num paladar a delito deliciosamente obscuro, desenrolando o quimérico bandoleiro de lábios de cauda vermelha. Aprazar-me-ia ser assim lembrado: “Bandoleiro de lábios de cauda vermelha”.
Salpicos na casta manhã tão habituada a mim, tomo o pensar que vos confessei e levo-o pelos trilhos dum jardim proscrito, de luminosos monges sem lei... Balança aberta a cortina virginal sob a luz amniótica e o corpo deforma florindo.
Ligo o rádio, ouço o crime ao longe…
Bem alto!
Ouço o crime ao longe, bem alto! Planeio-o... Transgressão dedilha mordaz, entre os capítulos apaixonados deste plano, ideias de maldade e eu repito-as sabendo o que me espera. Irei desarmado assalta-lo, o banco, as suas entranhas de valor… Levarei tudo! Vestido na palavra, cara vendada no verso e alma por romance possesso.
Levarei tudo!!! Tudo o que preciso para romancear, sem termo ou obediência... Sem medo de vozes encrostadas preconceito, seguro daquele que nos escreve. Cúmplices de mim, aquelas notas pertencem-me páginas prosa por ser. Sagrado destino eleito à revelia, orei pois:
Crime clamo
Sem saber que Deus amo
Mas escrevo
Escrevo nas coisas
Das pessoas com coisas
Donas deste mundo mutilado
Nessas suas coisas somadas notas
Onde eu somo páginas
Escrevo um tudo romance
Tudo poema
Crime que seja
Escrevo e clamo
Este romance em notas roubadas.
Brinda-me com asas de luz e portas abertas num céu de flores, que num recuo dos ventos partirei distante do fim, voando sem cor. Nativo malvado pois, palavras que finalmente o são...
Um velho de olhos palavra, um dia aproximou-se lento numa rua cujo nome nunca soube… Sem me conhecer, sábio sentou-se e a meu lado falou vagarosamente… Desvendando um lugar remoto, sem eu saber porquê e porquê eu, murmurava caminhos e insistia comigo:
“Nesse campo sem fim, onde árvores milenares sujam o chão de versos livres, encontrarás uma tinta de raízes na alma… Uma tinta de único teor… Agora nunca te perderás”.
Não disse o seu nome, mas tenho-o em saudade pois era hábil o poema que o iluminava.
Hoje percebo, sem medo afianço responsável o porquê daquele dia… Sei onde crescem essas árvores e preciso lá chegar hoje. Borbulho a tinta que nos falta. Travo certeza, sem saber se prosa, se poema, mas insubmisso alcançarei esse campo, onde habita rubra pelo chão de seu tom, a tinta rainha em folhas mágicas coroada.
Paro o caminho, descanso sobre a aragem que empurra esta malfeitoria e aponto instantes. Pequenas razões onde creio e tento confundir esta ansiedade, indícios ou pecados meus devo explicar… Apressam-se pelo extenso do corpo, entre o teor da tinta e os números de série das notas por quebrar, as horas… E a estrada alonga-se.
Saboreio todo este ar que inspiro, atravanco pulmões e antecipo o crime no pormenor agitado da alma...
Avisto além, por fim, as árvores que bebem palavras e crescem raízes de poemas, tal como o sábio segredou ao horizonte. Aconchegar-te-ão verdejantes nos cânticos entoados pelo balançar das folhas e tu descobrirás o ritmo que demanda esse olhar ávido de fortuna… Beberás o romance num cálice de chamas, palavras transparentes não mais! Pouco a pouco elas respiram-te, algo as preencheu nesta planície foragida, talvez a verdade desse bandoleiro de lábios de cauda vermelha e da sua promessa de vida. Máscara fora, fundo quem rouba olha...
Sereno da sua escolha, colhendo as flores do destino, brilhas visão de larápio... Pintar irá este vil, trazendo o longe para o seu colo... As palavras… O romance…
Travo o carro em frente à fachada do banco, no lado de lá da rua. Deixo a chave na ignição, enquanto as janelas do prédio conspiram reflexos por chegar corsários… Decorei o roubo à exaustão. Na bagageira, a tinta borbulha, inquieta-se, ansiosa como estes dedos querendo servir o verso. Dissolvê-lo no sangue, dar voz ao romance…
Vamos!
Sais brusco, salivando pelo assalto, per momento caminhante lesto. Sustida que foi a trama na extensão dos dias sombra, encontra direcção neste labirinto e de vermelho brota vulcânica…
Tremam!
Entro já acusado, corro a sala numa palavra que a todos a alma estala… Um nome, um grito e ouço a queda de toda esta gente, vítimas casuais inertes sobre o mármore do chão. Aproximo-me duma mulher, retenho-me na sua expressão, que não existe... Não perco mais tempo nisto, não são de mim que são vítimas. Acelero o passo entre eles, rodeando o balcão. Falta pouco, estão nas minhas mãos... Finalmente! As notas roubadas como irão ficar conhecidas, estas que guardo sem ver. Não há tempo, depois...
Não houve qualquer alarme, o momento afasta-se. Corro e destravo o carro, evado-me desta paragem...
Saio do carro, descarrego tudo... Nos próximos meses serei hóspede da solidão que há muitos anos mora na herdade Domus, herança ermo que sempre evitei e que por ironia das voltas vividas será agora o meu abrigo, onde me resguardo dos cães atiçados pelo aroma único destas resmas e resmas de páginas “brancas”.
Passa pouco do meio-dia, cumpri o proposto anotado… Selo-me, correndo trancas, ocultando vestígios… Ao longe é deserto devoluto, a ruína que olham e passam sem ver. Enfim sós, a tinta, as notas e o criminoso trancados pela mesma sorte. Estudam elementos, decidem entre si e a aparente dócil chegada adormece na dureza dos passos por vir.
São anjos falsificados suados ficção, torneio o delito em liberdade… Como destino contraído, como vírus a retratar pela mão maior no vazio das notas… Escalas de nuvens carregadas, capítulos em falta... Assaltemos irracionais já, as letras amadas... Cela tua, teu romance, perde-te na intimidade... Ácido fôlego, arco amorfo desabitado... Inundarás de vida, demónios príncipes de vontade... Agarro um punhado de notas, instrumento, rendo-me desflorando prosa:
«Para lá de tudo, moro num quadrado fechado por vidros... Quatro paredes atravessam-no... Deslizam fácil sempre que as empurro... Moro sozinho... Oito triângulos dinâmicos e apenas eu... Oito quartos por encher... Lá fora, na fronteira do jardim, um muro cerca-me... À casa e a mim... Não permite contemplar... Não vejo para lá dele... Não sinto o exterior... Vivo encerrado... Não sei como aqui cheguei... Já não estranho também... Dispenso explicações... Existo hoje... O olhar trespassa o vidro das paredes exteriores, esbarra no opaco muro... Como será lá fora? Mudo a configuração da casa... Parece diferente... Pareço diferente... Não... Mascaro a minha cela... Não me converto à felicidade que imagino lá fora... Para lá desta prisão...»
Os dias sucedem-se, rascunhos intermináveis e rasgo, as horas que escrevo, os pensamentos que emendo, entre olhares duvido, num nada procuro… Perco-me nele, no zig zag das manchas… Tinta escusa me assombra e as notas intermináveis não deixam respirar. É angústia, que de sujo acordo. É manhã e continuo a adormecer a monte. Sabe bem e não sabe. Sufoco se não te escrevo, uma epiglote em obstrução... Tento respirar, percebe-te... Intimida-me o reflexo desproporcionado, ri-se ele... Líquido alcalino, icor de palavras por lapidar... Repito-me! Onde estão as notas? Onde está a tinta?
A casa que descrevi a sangue asfixia-me, hoje. Não percebo. Será motivo? Será consequência? Ouço o coração puxado, batendo forte porque enfermo nesta encruzilhada. Agora que tenho tudo, incerteza...
Será este o teu corpo romance? Será? Tusso, o oxigénio resolve novamente intervalar. Será esta cela destino, a nova e final morada? Ou escrevo para saltar de vez esse muro? Abro o cofre, numero as notas escritas. Não sei responder ainda, mas não suportava esta falta de ar:
«Há dias em que encontro motivos... Noutros duvido deles... Acumulo porquês sobre o próprio... Destapo uma definição para o reflexo... Escapo-me às paredes da casa onde habito... Não lhes toco... Olho para baixo... É fundamental que não lhes toque... Desvio-me... Luto para que ainda seja neste tempo... Reforço o motivo... Ou não... Ainda se oferecem motivos? Onde? Não nesta casa... Ou não... Talvez... Aqui ainda sim... Não posso confirmar... Mas também não o posso desmentir... Haverá espaço? Haverá lugar para um verdadeiro motivo? Caberá dentro destas paredes? Servirá? Qual o tamanho correcto dum motivo? Ficará bem vestido no próprio? Em que cor deverá aproximar-se? Só lamento este muro...»
Morei a casa de todas as vontades e este vazio é o largo do meu desencontro por este tempo demorado, apesar das notas roubadas que tanto me orgulham. Relembro o encanto dos falsos heróis da Atlântida. Enrubesciam os lábios irrepreensíveis de ninfas de asas cor do céu.
«Nas fachadas dos prédios arquitectos, as janelas abrem e fecham, dividindo-me no confronto do próprio e o reflexo. São as velhas senhoras, que outrora foram meninas também, e as suas histórias que encantam; são os seus fantasmas expirando o charme que jamais me perdeu de vista, um perfume negro singular que cresce apenas nos olhos do abismo, no último sopro e que sempre aproxima-se… Não quero ser herói e falsos somos todos, menos quando nos mudam a fralda.
Morei a casa de todas as vontades e este vazio é o largo do meu desencontro por este tempo demorado.
Ninguém escapa, que escolhas roubar ou conquistar... Nada mais são que tijolos prontos a usar em torres, castelos, muralhas, simples casas de monte, etc. etc. etc.; Reafirmo, não são só para ti, estes “meros” tijolos passam pelas mãos mais puras ou pelas mais putas que podes ter, por fortuna ou infortúnio, conhecido ou por fado do destino possas ainda vir a encontrar. Vale a pena esperar pelos encontros e pelos desencontros.
Morei a casa de todas as vontades e este vazio é o largo do meu desencontro por este tempo demorado.
Vocês não se lembram (apesar de já vos ter contado), mas interessei-me por estes tijolos ao levantar o muro que um dia inventei para cercar a casa… Aquela, com 8 divisões triangulares, paredes móveis e revestida a vidro no seu limite exterior. Esta parede exterior transparente obrigava a uma visão fixa e contínua para o muro opaco e branco, situação geradora de incertezas, dúvidas e porquês dada a altura indefinida do muro. Os cálculos que efectuei, que tenho vindo a efectuar ainda não me permitiram descobri-la, é alto como a vida.
Morei a casa de todas as vontades e este vazio é o largo do meu desencontro por este tempo demorado.
Obriga-me, o muro, a empurrar a cabeça bem de encontro à nuca para provar que o céu ainda cá está, neste labirinto de sombras.»
«Antes teor que teorema, vê lá se além de poeta és tu poema»
Agostinho da Silva