Poemas : 

o rio não está á porta parte 2

 
Voltei ao tempo do rio, ao tempo em que o rio se ajoelhava como um imperador inclinado aos teus pés. Ainda tens na tua memória aquela expressão o rio está á porta, agora os teus olhos parecem rebanhos a pastar na margem das tuas recordações. Abres a caixa de costura e escolhes um botão para pores na tua saia azul. Regressaste da tua viagem à casa dos teus pais. A tua mãe que tinha a profissão de fazedora de bolos agora vende caixas de plástico da tapawere, a tua mãe é um agente secreto, a tua mãe anda metida no terrorismo das caixas de plástico, ela anda toda pintada, tem os olhos carregados. Desde que o teu pai morreu que ela carrega na pintura, que foi duas vezes à discoteca e apanhou uma valente bebedeira. Tu ficaste preocupada com ela, querias protege-la como se ela fosse porcelana, imaginaste que uns homens maus, uns marginais iam abusar da tua mãe. Tu não és uma gaja conservadora mas acontece aquela fase em que queremos ser o rei do nosso rei. A tua mãe também usa as calças rasgadas e anda a aprender danças de salão, o seu par é um Argentino de meia-idade que depois das aulas convida a tua mãe a beber chá preto enquanto ele saboreia o seu rum com limão e começa a contar-lhe o azar dele com as mulheres, que gostava de levar a tua mãe para a Argentina, que ele era dono de muitas terras mas que gostava de possuir o céu dos olhos dela, ele a dizer isto numa conversa fiada a tua mãe a escutar com muito interesse e a interrompe-lo com um; e depois? Ela a ficar com os olhos arregalados como uma criança que só com os olhos faz derreter um gelado.
Estás a arrumar o quarto, o quarto acumulou alguma poeira, passas os dedos no chão nos moveis, fazes um traço de poeira e tens um arco-íris e tens uma aranha gigante a contemplar o teu arco-íris, a comer gulosa essa poeira acumulada nos moveis, nos livros, nas arcas. Pensas em piratas, achas que a tua mãe encontrou um pirata Argentino, que um dia ele a vai empurrar, que ela vai cair no poço ou cair nos braços, se os braços forem de apertar e de dar calor. Mas tu não confias nesse Argentino, mas tu que tropeças-te nas próprias pernas, que acertaste umas coisas e falhaste outras. Se a tua mãe se apaixonar, o bonito, o verdadeiro dessa paixão é não desistir, mesmo que seja engano a água pura continua a ser pura e se ela tem sede mesmo que a água seja imprópria a sede dela e a água que há nela, a verdadeira intenção não a pode magoar ou perder. Gostavas de ficar sentada junto ao rio, parece que o rio não envelheceu, não lhe encontras uma ruga. Fizeste trinta anos e parece que te sentes com a idade de Abraão. Começas a sentir vontade de criticar tudo e todos, gritas, perdes a paciência, choras até transbordar e nessas alturas tenho medo de te tocar e ao mesmo tempo não quero ficar indiferente, talvez arranje um pretexto, perguntar-te como vão de saúde os teus bichos-da-seda. Sei que perguntar isto é um disparate, j á não tens idade para coleccionares bichos-da-seda, mas isso da idade, sim a idade é mais um peso na balança ou cada qual rouba no peso, seja como for quando estás assim difícil de descrever é melhor não te fazer estremecer.
O velho Argentino e a tua mãe juntaram os trapos, a tua mãe sabia que ele era um malandro, mas o mundo com as suas guerras, os seus crimes, os seus casos de corrupção também é um malandro e nós sempre acreditamos que o mundo vai mudar, que h á uma parte dele que faz sonhar. Carlos o amante da tua mãe conquistou-a com o perfume das orquídeas, nunca ninguém lhe ofereceu orquídeas assim. Tu foste ao casamento deles, foi um casamento civil, o copo de água foi lá na colectividade, foi uma cozinheira velha também Argentina que confeccionou a comida. Tu provaste pela primeira vez comida argentina, conhecias a musica de Piazola, o futebol do Maradona a banca rota, tu já sabias que aquele amor era pobre, ele tinha uma pequena reforma e algum dinheiro que tinha conseguido no jogo. A tua mãe sabia que o seu D. Quixote era um batoteiro, a tua mãe amava aquele batoteiro, gostava do cheiro a rum das suas roupas. O teu padrasto estava sempre bem-disposto, a tua mãe gostava de comparar ele ao teu pai. Entre vinte anos a ser parte da decoração e agora ser a devoção de um pobre Argentino. Ele gostava dela, Carlos escrevia poemas de pé quebrado, poemas de amor e salsa. Quando ele lia aqueles poemas a tua mãe sentia-os como se fossem os melhores poemas do mundo, ele próprio se gabava deles, que a tua mãe era a única que os compreendia. A tua mãe ficou com ele metade dos anos que esteve com o teu pai. Ele Carlos o batoteiro romântico não conseguiu fazer batota com a morte. Os últimos meses da vida dele passou-os a confessar-se á tua mãe como o ladrão arrependido das escrituras. Se a tua mãe tivesse um sorriso tão forte capaz de abrir um buraco na terra, capaz de o trazer de volta á vida.
A tua mãe passa horas a falar dele, agora dorme na sala porque julga que o espírito dele anda a vaguear no quarto, ela também ouve o barulho do baralho de cartas a bater na mesinha de cabeceira. Tu queres levar a tua mãe ao médico, os vizinhos acham que devias levar a tua mãe 
ao centro espírita, que j á houve um caso de um espírito bêbedo que dormia nas escadas, era o espírito de um marido que em vida só conseguia declarasse bêbedo. Tu achas os teus vizinhos umas criaturas malucas embora desejasses perguntar se era possível comunicar com a alma dos bichos-da-seda, saber se eles tinham mensagens do alem para ti.
Tu decidiste não levar a tua mãe ao médico, nem leva-la ao centro espírita. A tua mãe não vai atacar ninguém na rua, a mania da perseguição vai passar-lhe.

Lobo

 
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lobodaescrita
 
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Enviado por Tópico
ÔNIX
Publicado: 18/11/2010 10:09  Atualizado: 18/11/2010 10:09
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