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talvez um monólogo com deus [3/4]

 


não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


3.
meu deus. se hoje estou mesmo morto. tanto que os sinos tocam a defunto. porque não vens tu falar-me? deverias ter esse cuidado. sempre que alguém morre é teu dever vir ao seu encontro. pelo menos de uma palavra penso ser digno. não necessitas de grandes formalidades dizias-me apenas qual o caminho a seguir. ou então. mandas um mensageiro. um anjo. um qualquer pacóvio daqueles que nunca pecou nem por pensamentos. actos ou omissões. um daqueles que nunca teve coragem para te questionar e sempre batia com a mão no peito. quando se tratava de pronunciar o teu nome – ainda tens a oportunidade. para me irritar. mandares-me uma beata que. arrependida. se ajoelha no confessionário e pede perdão. por os nomes que te chamou nesta vida que lhe destinaste. ao lado de um estupor que se embebeda e a enche de porrada para destilar os fígados – mas tu não queres mesmo saber de mim para nada. às vezes até fico na dúvida se sabes que existo – um homem sem honra é capaz dos maiores disparates. e é nesse momento que sobe à montanha mais alta para te dizer que necessita de ti – já no seu topo. com as estrelas à distancia de uma mão estendida. deixa cair o corpo no baloiço das incertezas – sentado no penhasco. lembra todas as vidas ainda a viver dentro de si. não chora. deixa apenas cair umas pequenas lágrimas na palma da mão; amarra-as com toda a força. e olha para o céu a ver se te vê – o chão fica ali tão perto. e as luzes do mundo são ainda pequenos pontos de esperança. casas onde ainda há vida. mas nenhuma tem o meu nome. toda a fé está tomada por gente sem rosto – sei apenas que esta fé ainda existe pelos sorrisos que deixei para trás. um atrás de outro. até já não ter um único para me poder lembrar de como é sorrir. mesmo para ti – um dia. disseram-me que eras também meu pai. e a um pai há sempre a obrigação de se ter um sorriso. mas eu já não sei como se fazem sorrisos – é aqui que não te consigo compreender. e percebo que num único passo todas as interrogações voarão para a eternidade – estou triste. sinto cada vez as estrelas mais perto – não te exigiria mais do que apenas um bilhete com uma palavra tua. assinada pelo teu punho. para poder acreditar que ainda és tu que mandas neste mundo. neste medo que existe dentro dos meus olhos – podes não crer mas ainda quero acreditar que és tu quem decide tudo. que és tu quem tem a balança na mão – não quero admitir que tens os olhos vendados. nem muito menos uma espada amarrada à mão que um dia mandou fazer milagres – sempre ouvi dizer que não suportas a violência. ainda me lembro da minha catequista me contar uma quantas histórias a teu respeito. e eu cheio de orgulho por pertencer à tua família – ainda me lembro da primeira vez que me ensinou o pai nosso. disse-me que era uma forma especial de comunicar contigo. de te fazer feliz. de me ouvires – passei noites a dizer-te este pai nosso. repetia-o. repetia-o. repetia-o. pensava sempre que um dia ias ficar tão feliz que me falarias – acabava por cair de sono. com os olhos espetados num retrato onde na parede o teu filho subia ao reino dos céus acompanhado por uma dezena de anjos – o que mais me impressionava era os raios de luz que lhes serviam de guia para se sentar à tua direita. eram tão brilhantes. sempre que acordava olhava para o céu na busca de uma luz que me levasse até ti – havia dias. desesperado por nunca falares comigo. que dizia o pai nosso em voz alta. tão alto. que acabava sempre a imaginar ver-te a tapar os ouvidos por já não aguentares o pranto dos meus suplícios – perdido na noite. perdido do meu próprio corpo. partia em busca de respostas que nunca encontrava – havia tanta coisa que não sabia explicar. a solidão muitas vezes deixava-me apenas com os ossos do corpo na mão. e as dúvidas já quase não tinham corpo para o continuar a ser – nunca entendi muito bem essa treta de dar a outra face quando levamos uma bofetada. a minha professora muitas vezes. amargurada pela ingratidão de quem jamais iria aprender as letras com aquelas formas arredondadas. recorria severamente à sua palma da mão para me trazer à razão de um abecedário universal que eu não compreendia – nunca soube ao certo se era por não saber juntar as letras. ou se era por ser o único que usava suspensórios por cima da camisa branca bem ajeitada com o botão apertado junto ao pescoço. de cabelo bem penteado e sem lêndeas. e umas botas enormes preparadas para aguentar todos os invernos. mesmo os que nasciam no quadro preto de uma escola que se dizia primária – ela só não sabia que por baixo da camisa havia uma medalha de um anjo da guarda. benzida no mesmo dia que me entregaram a ti numa pia de pedra rodeada de santos e promessas de protecção – nunca ganhei coragem para lhe oferecer a outra face. bem que queria ser como tu. mas não conseguia. nem era pela dor. era pelo orgulho. queria ser diferente – nunca entendi porque me batia e menos entendia porque é que tu na parede. com os olhos pregados em mim. nada fazias – bem sei que tinhas as mãos e os pés pregados à cruz. mas. meu deus. então os milagres que sempre me disseram que fazias. onde paravam? foi aí que percebi que nunca serias capaz de me aliviar das diferenças que começavam a nascer em mim – tudo me parecia tremendamente estranho. a escola estranha. putos estranhos. descalços. rotos. com lousas em negro como a sua vida já o era –
apesar de desconhecerem o mundo que tu lhes reservaste. sorriam. todos menos eu. e eu que tanto queria. tanto mesmo – o único caderno de linhas para escrever palavras direitas era o meu. mas sempre que escrevia o teu nome. o “d”. saía do carreiro. nunca percebi o porquê do teu nome sair sempre fora das minhas margens – a vara. reservada para os dias que a professora descansava as mãos. rugia pelas orelhas abaixo. e nos micro segundos entre uma varada e a seguinte. eu sempre olhava para ti – naquela parede descoberta de qualquer adorno. apenas existias tu. queria tanto que descesses daquela imortalidade e que com um milagre daqueles que me tinham feito acreditar em ti parasses aquela vara maldita. aquele desespero. aquele nunca. porque parecia que nunca acabava – mas não. tu nada fazias. continuavas na tua cruz. ali a olhar para mim como se nada estivesse a acontecer. ignoravas-me. fazias de conta que nada existia. a mim e a todos os outros que como eu te imploravam para nos acudir – sempre foi assim. mesmo quando ia para casa triste e desanimado por não encontrar crianças com cadernos com linhas na escola. nunca me apareceste a dizer uma palavra. nunca sequer vi uma pomba branca – nesses dias. queria tanto que me dissesses alguma coisa. mesmo que me dissesses que o meu caminho iria ser um inferno. eu aceitaria. ainda acreditava naquelas histórias do teu filho. nos milagres de fazer ver os cegos. e aquela boda em que o pão e o vinho se multiplicaram. ou de lázaro. que voltou das trevas para te poder abraçar e acreditar que tu eras afinal a vida certa – sabes! nesses dias em que me contavam essas histórias eu chorava. de alegria. por todos aqueles que te puderam apertar a mão e dizer: -- obrigado por me dares um caminho – apesar de tudo eu sempre te perdoei por nunca me teres aparecido naqueles momentos difíceis. pensava cá para mim. está ocupado! em algum lado alguém precisava mais de ti do que eu –
 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 17/11/2010 00:12  Atualizado: 17/11/2010 00:12
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
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 Re: talvez um monólogo com deus [3/4]
Ah, Deus eu só lhe peço não abandone a gente... Amém. Vou levar. bjs


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 18/11/2010 01:36  Atualizado: 18/11/2010 01:36
 Re: talvez um monólogo com deus [3/4]
Essas imagens que fazes, molham os olhos...
Visualizei... Senti...

Parabéns poeta, grande admiração pelos teus escritos.


Beijos.