não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
2.
hoje estou morto. esta coisa de morrer e continuar a pensar é de louco. só ainda não sei bem quem morreu. espero que não seja aquele que costuma escrever a morte em vida – esse faz-me falta para o resto da jornada. tenho umas quantas palavras pensadas. desde ontem. á espera de tombarem em papel pardo. cru. daquele que é feito de restos de árvores que um dia fizeram uma floresta – estas palavras. também elas moribundas. agoniadas pelo tempo que levaram a ganhar forma literária. recusar-se-ão a dormir – as noites tornar-se-ão então num inferno. e as manhãs cada vez mais distantes – estou louco. há dentro de mim um sofrimento. vive sem cadência. sem rumo ou trajecto. e atravessa uns todos que vivem num corpo só – tenho um tempo ainda em memória – um onde ainda os olhos não distinguiam as cores fortes. e tudo era suave. tudo era algodão doce. até os primeiros ruídos por tão novos serem. confundi-os com as músicas de embalar – esta dor de não saber escolher. de não ter um líder capaz de criar uma ordem nos meus anseios. é insuportável – estar morto assim não é justo. não acredito que algum deus queira que alguma criação sua seja assim. talvez deus não seja assim tão perfeito como penso. talvez as suas mãos estejam trémulas pelo tempo que leva a fazer pessoas – milhares de anos. milhares de pessoas. e sempre a inventar jeitos de ser. jeitos de pensar. jeitos de resmungar. jeitos de conquistar amores – talvez nesse dia. deus estivesse também ele muito triste. desgostoso. aborrecido. zangado com o mundo de marionetes que imaginou – fazer deste pedaço de terra um paraíso – adão e eva já não trincam a maça como antigamente. e a serpente que no passado rastejava por um solo sagrado. é agora um monstro. de umas quantas cabeças que caminha em cima de um par de andas – acredito que este meu deus também está desorientado. perdido entre as múltiplas criações cada vez mais exigentes e complexas – exausto pela dor de ver que até um deus. num acesso de raiva pariu-me assim. um assim que nunca foi capaz de numerar com um qualquer código de barras. uma etiqueta com as indicações de uso – passei a ser assim. uma coisa que como não é coisa nenhuma um dia percebe que as sedielas que seguram a marionete estão entrelaçadas. enrodilhadas – este meu deus. também ele na merda. arrasado. acabou por criar um boneco triste à sua semelhança – magoado. cheio de feridas abertas e com uns braços pequenos. tão pequenos que nunca se conseguiu acarinhar a face que todos os dias olha para o seu interior para dizer que não suporta mais este mundo que construiu dentro de si – tenho que ter uma conversa com deus. talvez ele também necessite de ser perdoado. talvez ele permita que eu pegue numa mortalha e lhe limpe o suor do cansaço de ter que todos os dias contar comigo neste seu mundo – talvez entenda que ainda hoje estou à sua disposição para me poder explicar aquele mau dia – este deus vai ter que me ouvir. vou ter que saber porque me fez com vários corações. vermelhos. atrofiados. bastava-me um. um que soubesse escrever apenas versos de amor. versos capazes de me fazer chorar para além de um punhado de palavras que podem representar uma vida –