Poemas : 

Causos sociais (O homem da latinha)

 

Lá vai o homem da latinha. Catando uma a uma. Limpando a cidade. Tentando sobreviver com dignidade.
Lá vão os jovens da latinha. Esvaziando o recipiente. Encharcando a cara. Entulhando o passeio, o canteiro, as ruas.
Lá vão as moças da latinha. Estampadas na propaganda. Ajudando a vender mentiras. Preenchendo o vazio que fica entre o fazer e a razão.
Vai o homem da latinha. Com sua vetusta bicicleta escangalhada, atrelada a uma carrocinha. Puxando o peso da vida em pedais enferrujados.
Vão os jovens da latinha. Embriagados, guiam seus carros possantes. Rasgam as ruas, as leis, as carnes e ossos de quem por infelicidade cruza o seu caminho.
Vão as moças da latinha. Pela manhã, ao esteticista; pela tarde, ao cabeleireiro; pela noite, aos compromissos do empresário alcoviteiro; pela madrugada, á cama de quem lhe sorrir um contrato futuro mais promissor.
O homem da latinha, sob a penumbra do ocaso que se lhe cerra ao derredor, trabalha noite adentro; labuta até o extenuar dos seus músculos magros e fibrosos; com a fibra de quem luta pelo pão da manhã seguinte, como quem luta contra a morte, pela fome, de rebentos.
Os jovens da latinha acordam com sol alto. Colocam-se em ponto de saída ao escurecer. Transitam com dignidade sob a luz do dia; transgridem às escuras sociais.
As moças da latinha brilham sorrisos alvos sob os holofotes; usam as luzes para venderem a si mesmas; buscam na obscuridade das relações carnais pessoais a glória de serem apontadas nas ruas como sendo as moças da latinha.
Homem da latinha, bicho que se entoca após o penoso e mal quisto ofício de animal simbiótico que limpa a imundície de outros seres seu iguais para seu próprio sustento.
Jovens da latinha, cria de animais inescrupulosos que inventam um mundo onde estruturas biológicas iguais possam se diferenciar por meio dos atavios, nomes e títulos desiguais.
Moças da latinha, criaturas mitológicas, as quais creem ser algo mais que conjunto de células. Mas vivem tal qual um monte de ossos, músculos, pele, cabelo, maquiagem, indumentária.
O da latinha, nada é. Some-se no escuro da noite; executa seu ofício silencioso, invisível; sendo desagradável quando surge na paisagem harmônica onde ele não existe, não deveria existir para além das latinhas que desaparecem.
Quando os da latinha, ébrios, o atropelam, manchando suas pinturas aperoladas, abreviando a noite enquanto tentam limpar a sujeira que lhes respinga no pára-brisa e no sobrenome, buscam as da latinha, com quem pretendem sufocar qualquer sentimento de angústia em pares de silicone. E as da latinha os recebem, os afaga, os narcotiza em troca dos seus sobrenomes, por um triples em área nobre, por uma foto de capa em uma revista de moda, da moda, por um futuro junto ao baú de níqueis dourados do sogro gordo, avarento, comedor de criancinhas.
Lá se vão todos os da latinha. Todos somem na obscuridade da memória. E fica deles apenas a reminiscências, os ecos de dores, embriaguês, sorrisos fáceis para a fotografia, uma frenagem depois do impacto; fica também o tilintar das moedas, das latinhas, o chiar da catraca enferrujada dessa engrenagem obsoleta chamada sociedade, com a mesma vagareza do homem da latinha, com o braço enfiado na lata de lixo, brincando com sua própria inteligência, dizendo de si para si, eu sabia, lá tinha, sob o gemido dos seus pulmões “enfisêmicos”, engolido pela noite que nos veda a inteligência.

 
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Arcanjo
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