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estes lados. nossos

 


não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


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hoje tenho entre os dedos um pedaço de terra. trouxe-a de um jazigo para amaciar uma saudade – depois da tua partida senti-me sempre tão perdido. tinha ainda coisas encaixotadas do passado para te dizer. eram importantes. digo eu – não devias ter apanhado esse autocarro. bem sabes que o caminho por aí é demorado. estreito. essa estrada é sempre tão isolada. tão triste. tão sem vida. tão escura. – tenho medo que estejas sozinho e com frio. podias ter levado aquele sobretudo de lã às cores. fazia-te bem mais novo. era lã pura. combinava contigo – um dia vesti-o. irritei-me. não me assentava nos ombros. sempre foste mais aprumado. tinhas as costas sempre tão direitas – as minhas. bem. as minhas sempre foram apenas mais umas costas – tenho dias em que adormeço a acreditar que é possível viver nos sonhos – ontem consegui falar-te com os lábios. sempre depois daquele beijo obrigatório na face. quente. senti eu – deixaste-me ficar um trago açucarado na boca. mel – calei-me. guardei-o no silêncio criado pelos meus olhos. nosso – apeteceu-me estender as mãos. tocar-te – tive medo de acordar. guardei a mão na algibeira. é nesta que tenho cravada a linha da vida que um dia foi cortada pela tua ausência – nesta linha que continua a crescer aos ésses . criei uma árvore em terra fértil quando ainda não via todas as folhas. algumas viviam no topo das árvores. sem luz – era pequeno demais e tu viravas-me sempre para nascente – nos dias em que me pegavas ao colo. as árvores eram enormes – a vida ainda acontecia nos teus braços. fortes. tão fortes que sempre sorria quando me erguias em direcção ao céu – ainda nem imaginava que havia um céu capaz de receber todos aqueles que gostamos – apenas sabia de um jardim infantil criado para mim – havia sempre tanta gente a dizer coisas neste jardim. faziam um quase barulho. talvez um quase música – tu. falavas como se as palavras ainda não tivessem sido inventadas – nunca paravas – e nos teus olhos. nos teus olhos a alma das pessoas – neste mundo. havia um baloiço que nunca parava de ir e vir. como tu. partias para o teu mundo que mais tarde haveria de ser também meu – regressavas sempre. por mais que o tempo matasse o próprio tempo. sempre com um sorriso. sempre o soube – parecia tudo tão simples. bem sei que tu também eras simples – este baloiço andava para lá e para cá devagar. havia ali algo que eu ainda não percebia. sabia apenas que voava sempre de norte para sul – tu bem que me apontavas o caminho. mas era demasiado pequeno para entender que até o sol um dia pode morrer – mas não desistias. os teus gestos eram sempre palavras novas na certeza de ver um homem feliz – na tua presença o baloiço nunca parava: livre. procurava sempre novas palavras. novos ouvidos. novos olhares. novos gestos. esquecias sempre o teu caminho. cortavas o futuro. alagavas todos os longes. ficava apenas um ali. um acolá – as argolas de ferro que te seguravam à vida já rangiam – nesses dias. ouvia-se o vento. mal eu sabia que este ir e vir era já a vida a esgotar-se – cansado. respiravas ainda amparado no sinal da cruz com que te deitavas – tu ainda tinhas um deus. ele também era meu. estamos amuados – para te ser franco dele nada sei – no ar as folhas chamavam o outono – depois. apareceu aquele autocarro. as argolas partiram-se e as cordas começaram a chorar – nesse dia que viajaste fiquei tão só – tínhamos ainda tanta coisa para dizer – mais tarde um homem de chapéu preto chamou-me pelo teu nome. aquele que eu nunca uso por ser só teu. deu-me uma chave com um fita preta sem nenhuma palavra tua – tu não eras homem para partir sem palavras. não eras – tu sempre me dizias: porta-te bem enquanto estou fora. não aborreças a tua mãe – alguém te enganou. digo eu – fomos enganados – tiraram-te a memória para poderes partir sem boca – a dor comeu o silêncio – sei que um dia vais voltar. ou então esperarás por mim. tens de me explicar onde deixaste aquele santinho que usavas na carteira. nunca mais o vi. acredito que volte contigo – sei que um dia me vais pedir para falar da vida que guarda todos os dias – enterro tudo num buraco. onde criei a árvore – a pá é a tua voz.
 
Autor
sampaiorego
 
Texto
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Enviado por Tópico
ÔNIX
Publicado: 10/11/2010 22:42  Atualizado: 10/11/2010 22:59
Membro de honra
Usuário desde: 08/09/2009
Localidade: Lisboa
Mensagens: 2683
 Re: estes lados. nossos
Gostei de ler.
Gostei da imagem...que como sempre com um gosto muito peculiar...

A tua escrita adquiriu ao longo do tempo, uma maturidade e uma complexidade que por ser tão real e sentida, se transforma em algo de especial, aos meus olhos, aos meus sentidos, transformando-os também e conduzindo-os para uma tela de onde se podem ver as mais belas imagens.

A profundidade com que te assumes nesta nova sede de vivenciar experiências novas, nesta singular dança que é a vida em formas únicas, mas variáveis com o tempo, conferem-te um estilo muito próprio que eu gosto.

beijo

Dolores Marques


Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 11/11/2010 00:02  Atualizado: 11/11/2010 00:02
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 18598
 Re: estes lados. nossos
O mundo virou de cabeça para baixo no omento em que soltou minha mão, não era o momento de me fazer lamento, te pedi tanto: "nunca durma fora de casa...". Esse deixo pra ti como agradecimento do que senti ao ler esse texto. toca o céu com palavras. Obrigada. bjs


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 11/11/2010 00:24  Atualizado: 11/11/2010 00:24
 Re: estes lados. nossos
Senti cada palavra como se fosse minha... as vezes eu tento escrever sobre essa dor, na maioria das vezes choro alguns rabiscos, não tão intensos como os teus versos, talvez alivie... talvez acalme...
A vida continua...e esse silêncio que grita dentro, essa dor que fica intensa, um dia tem que acabar...

Sentido demais...
abraços


Enviado por Tópico
GlóriaSalles
Publicado: 01/12/2010 15:33  Atualizado: 01/12/2010 15:33
Colaborador
Usuário desde: 28/07/2008
Localidade: Flórida Pta-SP
Mensagens: 2514
 Re: estes lados. nossos
Aqui estou vivendo teu texto, tuas lembranças, tua saudade, tua esperança.
Impressionante como todos somos iguais...
Então querido poeta e amigo, a dor é tanta que quase não suportamos, porém sua sapiência me ajuda a ver tudo sob um outro prisma...
A gente nunca se recupera, só administra essa dor para que ela não nos engula.
As vivências da vida e da morte nos fazem amadurecer, reconhecer que somos passageiros de uma grande viagem.
Daí a importancia do legado que deixamos...
Hoje Luiz, dor da perda é quase desesperadora, amanhã sei que a saudade será uma espécie de consolo.
Obrigada pelo seu carinho.
Bom termos amigos como vc.

beijos
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/04/2014 13:16  Atualizado: 23/04/2014 13:16
 Re: estes lados. nossos
Li com tanto amor!
Encantou minh'alma.
Creio ser esta, a dor sem volta.
A mágoa eterna.
Lindo demais!

Abraços


Enviado por Tópico
MarySSantos
Publicado: 04/05/2014 21:18  Atualizado: 04/05/2014 21:18
Usuário desde: 06/06/2012
Localidade: Macapá/Amapá - Brasil
Mensagens: 5852
 Re: estes lados. nossos
Já é a 5ª vez que leio este poema/texto e nunca encontro palavras para comentar, porque emociona e dá a impressão que a alma da gente quer fugir pra fazer parte dele. é um dos meus preferidos. obrigada.


Enviado por Tópico
MaryFioratti
Publicado: 08/05/2014 01:04  Atualizado: 08/05/2014 01:04
Membro de honra
Usuário desde: 09/02/2014
Localidade:
Mensagens: 2420
 Re: estes lados. nossos
Profundo, tocante, maravilhoso.
Adorei os detalhes, de uma rotina, de
tantos sentimentos amontoados durante tanto
tempo.
Aqueles sentimentos que se tornam tao mecanicos,
e so percebemos depois... o quanto eles eram
importantes, verdadeiros e unicos.
Muito bonito. Gostei demais.
Abracos
*Mary*