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cruz ansata

 
cruz ansata
 


não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


já não tenho palavras para segurar a cabeça que comprei naquela loja de ferro velho. pende para o lado. o lado onde não há coração. onde morrem todos os verbos que amparam a injustiça – os braços. outrora selvagens e vigorosos caíram desesperados – apareceu a ferrugem. uma que conheci em tempos. corrosiva. matava todos os nomes – podem ruir a todo o momento. talvez tivessem crescido demais. e as línguas cuspissem encantos sem nada saber de braços com mãos dependuradas – agora não sei se desespere ou se espere – mesmo com toda a indiferença que sempre guardei – por detrás do olhar temo pelas minhas mãos – habituei-me a este corpo. despido. descalço. levo apenas à cinta uma sacola de couro e de letras – fazem uma vida – sorrisos poucos. lágrimas muitas – dos olhos redondos brilhantes já pouco resta. soltam-se agora pedaços de raiva – nasceu talvez na menina dos olhos. sempre tão sensível – sempre acreditou em tudo que via. ingénua – voltou tudo novamente. o tempo dentro de mim afinal é uma mentira – pensava que já me tinha esquecido dos amigos e agora vieram estes. os novos. os arrumados. os eleitos sem direitos. sem tecto procuram hipérboles como o diabo procura o pecado. talvez sejam parentes – sorte a minha. uma vida inteira a segurar o olhar dos que sempre acharam que não havia palavras dentro de mim – não me posso calar novamente – estas mãos também escrevem. não matam nenhuma palavra – bem sei que não sou fidalgo. e ainda não tenho aquele anel de ouro com pedra de hematite negra – e a cor negra que trago no corpo é de arranjar comida para fazer trabalhar as mãos – mas são sempre estas que escrevem. apenas estas. assim. cheias de marcas. de veias. de cicatrizes fechadas de dor – são as minhas mãos – estou revoltado. porque me roubaste o nome que escrevia apenas para dizer as minhas coisas. não a ti. não ao teu mundo. nem sequer àqueles que gostam deste sinal que tenho na face – escrevo para mim. para ser feliz como nunca fui – vê o que fizestes destas mãos. umas mãos ásperas. só hoje? talvez sim. talvez para sempre – também se pode escrever ásperas no meio de um substantivo comum – malditos sejam – a escrita não é só um dom. é dor. é gozo. é ejaculação. é orgasmo. é vida. é esperança – a escrita é essencialmente isto de ser o que sou quando escrevo. e quando escrevo sou isto – repito. sou isto.
 
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sampaiorego
 
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