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A carta que me escrevi

 
Lisboa,Sexta Feira dia 06 de Novembro de 2010 às 03.35h



Olá companheira!

Antes de mais, espero que esta minha carta te vá encontrar de saúde ou que pelo menos o reumático te dê algumas folgas de vez em quando, junto daqueles que te são mais queridos e te não tenham abandonado.
Tenho a certeza de que neste momento se esboçou um sorriso nesse teu rosto já muito enrugado mas ainda com traços das feições com que te conheci desde a meninice e que fui acompanhando em segredo, com a cumplicidade do teu espelho onde te miravas amiúdes vezes e ias descobrindo aqui e ali os estragos com que o inexorável tempo te ía brindando. Devagar, devagarinho... mas a preceito. Nunca te ouvi queixar pois sabia-te jovem, por vezes até criança, lá bem no fundo do teu sentir. E no fundo também, era isso que realmente importava. Para ti, foste jovem por toda essa vida fora, tenho a certeza disso!

Lembras-te de quando fizeste 30 anos e da tristeza que se abateu sobre ti nesse dia? Como se o mundo de repente te caísse sob os ombros e te fizesse ter consciência do seu peso em cada tic tac do relógio que trazias no pulso, na sua cavalgada infernal a caminho do fim. Tonta!...
Nem te passava pela cabeça o que a vida te tinha reservado e o que de bom e de menos bom ainda te viria a oferecer. É que, e se bem te recordas, viveste mais e intensamente em meia dúzia de anos do que tinhas vivido até ali.
Aprendeste com os teus próprios erros, remendaste o que pudeste e o resto para o qual não tinhas nenhum remédio de efeito rápido e eficaz, foste deixando andar até que o tempo curasse. E curou mesmo!
Tinhas sonhos como qualquer outro. Alguns não passavam disso mesmo, de sonhos. Mas outros viste como se foram realizando e fazendo de ti uma mulher. Uma pessoa mais segura, mais digna do respeito dos outros, e, o mais importante do que tudo, foste ganhando a pouco e pouco o amor próprio que te tinham roubado, tornando-te mais madura. Ganhaste confiança em ti mesma e aquilo que admiravas nalguns e nunca te passou pela cabeça que algum dia serias capaz de alcançar, chegou sorrateiramente, bateu à tua porta e surpreendeu-te!

Também te vi chorar muitas vezes. Mas no fim deixava-te aliviada. Lavavas o rosto e voltavas com aquele teu sorriso tão característico, com as tuas impulsivas e sonoras gargalhadas junto daqueles com quem convivias no dia a dia, como se nada tivesse acontecido e pronta para enfrentar um novo dia sempre acompanhada da esperança, que, apesar de tudo, nunca te abandonou. Talvez tenha sido ela que te deu forças para ir aguentando o barco que se debatia contra as tempestuosas marés que te assolavam a existência.
Criaste um filho que a certa altura se virou contra ti e tu nem sabias o porquê, ou se calhar até sabias mas preferias acreditar que era aquela rebeldia próprio da idade. O que tu sabias, isso sim, era que não merecias aquilo que ele te dizia e que te deixava arrasada. Ainda assim, mesmo quando, revoltado, se virava contra ti, procuravas sempre dar-lhe razão em qualquer coisa de modo a que te pudesses orgulhar do filho que afinal era teu...
Mais tarde acalmou e revelou-se ser aquela pessoa doce, meiga, equilibrada e dona de valores imprescindíveis a quem se chama ser um indivíduo de carácter; os tais valores que te tinham incutido desde criança e que tu, por sua vez, lhe incutiste também fazendo com que se tornasse uma pessoa de bem.

O que tu não esperavas, era que te acontecesse encontrar alguém importante com quem partilhar o resto da vida, bem sei, já estavas tão habituada a que ninguém se aproximasse de ti com esses propósitos, que te foi difícil acreditar que era realmente verdade e que os sentimentos também podem nascer de um inesperado acaso. De repente teres alguém junto de ti com quem partilhar as pequenas e as grandes coisas do dia a dia. Os medos, as angústias, as dúvidas, as alegrias e tudo o mais que possa acontecer. Nunca ninguém te viu tão feliz como passaste a ser dali para a frente. Acho que só aí conheceste o verdadeiro amor. Aquele que não se esgota como a paixão. Que vai ardendo em lume brando...

Se me estiveres a ler, é sinal de que estava certa no instante em que me ocorreu escrever-te esta carta a ti mesma, para te ser entregue expressamente no dia do teu 80º aniversário e com a recomendação de que fosses tu própria a lê-la.
Com óculos? Com lupa? Não interessa. Desenrasca-te!
Se assim for, é porque a operação que te fizeram ao olho direito há 43 anos atrás (numa altura em que a cegueira era iminente e como última chance de o reverter)e que te deu uma vida nova (uma espécie de milagre, como lhe chamaste) foi um verdadeiro sucesso! Bem haja a alminha do cirurgião que te operou!

Parabéns pelo teu 80º aniversário!
Que contes muitos, com saúde e que eu veja!

Sem mais de relevante, até porque a prosa já vai longa e se fossemos aqui a desfiar fio por fio do tanto que faltava ainda falar, nunca mais acabavas de me ler e os teus convidados devem estar mortinhos por te cantar os parabéns e te ver soprar tantas velas (tinham mesmo de ser 80?! Não sei se ainda terás folgo para tanto!).

Um grande abraço desta que daqui te escreve hoje, de um passado já longínquo mas certa de que bem vivo nas tuas memórias, cheia de esperança que este momento seja de facto real e recheado de emoção, tanta ou mais ainda do que aquela que neste momento me assalta!

Até um dia... companheira!


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*... vivo na renovação dos sentidos, junto da antiguidade das lembranças, em frente das emoções...»

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Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 06/11/2010 17:53  Atualizado: 06/11/2010 17:53
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 Re: A carta que me escrevi
Cleo, uma carta que irá nos ler mais tarde. Parabéns! bjs