Camaradas,
De vez em quando, surgem textos com curiosos desafios. Pergunta-se: por que escreves? Refiro-me, como deve imaginar quem me lê, à série: “Porque escreves?”, de Eduardo Montepuez.
Pois bem: por que escrevo?, porquê?, porque, simplesmente, me apetece? Não, não é assim tão linear a resposta a este por que escrevo. Antes fosse e muito certamente o mundo seria muito, mas muito mais interessante, sobretudo ao nível das aspirinas que o leitor toma às custas do que escrevo. No entanto, como pode ficar o mundo mais interessante sem as netas da folha do salgueiro? Fica em branco a resposta. Naturalmente que há sempre o verso da medalha: há quem aprecie. Assim sendo, cá vai o porquê, mas antes deste a raiz do porquê.
Não, não vou tão longe como o futebol em carica, que os tipos mais velhos do que eu jogavam e não me permitiam, não porque só tivesse quatro anos, que até dava jeito dar umas cabazadas, mas porque não tinha equipa. Ora bem, bendita A Bola, onde os nomes dos craques se encontravam impressos. Daí à cópia, foi um pulo e nem era muito difícil saber quais as posições dos jogadores, separados que estavam com ponto e vírgula e vírgula. Mesmo não acertando nos números das camisolas, lá que a coisa funcionou, disso não há quaisquer dúvidas. Ainda bem me recordo de um célebre jogo, o primeiro, onde levei com sete golos na minha baliza nos dez minutos de tempo de jogo, cinco por parte que os jogadores, os das caricas, claro, também mereciam descanso. Mas mais relevante que os sete, foi o um, aquele belo, excelente porque de fino recorte, golaço que marquei quase do meio-campo e reparem que para um puto do meu tamanho o recinto de jogo era bem grande.
E se não vou tão longe, que fique então mais perto, isto é: o escrever literário; isto, claro está, como quem diz.
Já longe das lides dos rebuçados em troca de beijocas e outras coisas que para aqui não têm cabimento, mas todas, descansem, de cariz mais ou menos inocente com que passei com mérito na Escola Primária, eis-me pois já noutras ondas, onde o mercado das cachopas era muito mais difícil, mas nem tanto assim. A técnica do “já que aqui estamos” ali, naquele caso que vou relatar, não se aplicava lá muito bem. Digamos que os meus olhos castanhos e as pestanas alongadas não surtiam o efeito pretendido, sobretudo porque, imagine-se o tolo, estava apanhadinho pela rapariga, e que rapariga, diga-se de passagem que ainda hoje, volvidos tantos anos, ainda lhe dou duas beijocas e os olhos se arregalam.
Tudo começou logo no primeiro dia de aulas, naquele instante em que a vi pela primeira vez, entrando ligeiramente atrasada à primeira aula. Tinha mudado recentemente para Coimbra e, logicamente, não conhecia os cantos à casa. A melhor forma de descrever a cena é recorrendo os métodos do cinema. Imaginem uma câmara lenta e uma ligeira brisa aparando os seus cabelos longos e castanhos. Ficou este que vos escreve logo ali espantado com tal beleza. Resultado: se as técnicas antigas muito certamente falhariam na conquista da especial atenção da moça, só havia que encontrar uma outra solução. A necessidade, diz o povo, aguça o engenho e eis o nascimento do poeta.
Graças à fórmula adoptada, ainda passei um momento de grande embaraço, mas, por sorte, foi numa aula de Português. A sorte, também diz o povo, protege os audazes. Ora bem, estava a enviar uma missiva via aérea para aquela que já era a minha namorada, oficializada e reconfirmada no decorrer dos intervalos, quando a “Stôra” se vira e vê o dito papel a viajar pelos ares. Pois bem, Pedro Baptista, vai lá buscar o dito. Estava mesmo convicto que iria mais cedo para a rua, mas, afinal, eis a “Stôra” toda babada a ler o poema, dizia ela, o poema que o Pedro escrevera. E que poema, afirmava.
Daí a começar a colaborar com o Jornal da Escola foi um instante, assim como esse novo estatuto de poeta me trouxe algumas vantagens competitivas relativamente aos namoricos, que isto de se ser poeta não é para todos. Afinal, concluo agora, quase uns trinta anos após, que não há diferença entre o poema e o rebuçado: produzem o mesmo efeito.
O pior é quando se fica de novo apanhadinho do clima. Mas por que raio se inventou essa coisa da paixão?, ou até daquilo a que se denomina comummente por amor? E foi por causa dela, frase que me lembra uma canção, que eu dei o salto de poeta para poeta, isto é: depois de brincar, mesmo com algum talento, segundo se dizia, com as palavras, eis-me à procura da técnica. Ela, a minha verdadeira e única namorada, quase dois anos, também escrevia poemas. Gostava de Torga e de Pessoa, coisa que eu não apreciava por aí além. Era mais dado, tal como ainda hoje sou, ao Pascoaes, ao Duarte, ao Sena, ao O’Neill, ao Herberto, ao Lacerda que, esses sim, eram os bons. Lembro-me, inclusive, que o Lacerda custou-me dois bilhetes para a rua. O primeiro porque afirmei categoricamente que o “Meio Dia” era um autêntico hino à Poesia e rua; e o segundo, eis-me a entrar, imaginem a cena, com o Jornal de Letras, nessa altura semanário, sob o braço, aberto numa página onde se escrevia: “Meio Dia”, de Alberto Lacerda, Prémio do Pen Club; mostrado à “Stôra”, rua, pela insolência. Mas que maravilha!
Bom, como devem imaginar, as raízes do por que escrevo estão nas raparigas. Agora, vamos lá ao por que escrevo, propriamente dito.
Entendo a actividade literária, sobretudo ao nível da poesia, como algo que preconiza o desvelar do mundo. Tendo esta leitura desta actividade, o mesmo é afirmar que tenho a pretensão de ter algo para dizer. Isto é: escrevo porque, convictamente, tenho algo a dizer. Se tal é ou não real, não depende de mim, mas de quem me lê. Eu radico-me nessa profunda convicção de que escrevo, tal como afirma um excelente poeta descoberto há escasso tempo, Abílio Brito, na obra que será apresentada ainda este mês em Braga: “Não escrevo para que me compreendam / Escrevo para ser imortal”. Esta é a força motriz da minha actividade. Não estar preocupado se do outro lado há ou não interesse naquilo que escrevo, refiro-me ao acto egoísta da escrita, mas somente estar preocupado, tal como ouvi há dias a um outro excelente poeta, José Félix, que o meu poema seja moderno, tal como se pudesse ter sido escrito há quatro mil anos.
Um até já, que isto vai continuar
Xavier Zarco