O espelho - de moldurinhas de madeira avermelhada, chinfrins, coisa de pobre mesmo - era uma preciosidade essencial no lúgubre banheiro de nossa casa sem encanamento de água. Ficava pendurado na parede caiada, acima daquela bacia sustentada pelo "lavatório de madeira", uma peça de uns 60-70 cm de altura, com três pernas curvas e dois tampos redondos com diâmetro de uns 40 cm (ah, por favor, quem souber de uma palavra que designe tal "lavatório" que me ensine, eu aprendi assim mesmo, "lavatório" ). A pequena bacia esmaltada ficava, é claro, no tampo de cima, maciamente encaixada entre as sobressaentes pontas recurvas das três pernas, para não cair. E no outro tampo, abaixo do embarrigado das três pernas, algumas coisas... a jarra de barro, a pedra de sabão, a bucha de palha rasgada miudinha... o que mais... nada, acho que nada mesmo, pois a nossa vida era assim, singela, exígua, minimalista a gente diria com palavras de hoje!
Pois bem... acima deste lavatório, o espelho para a gente ver a cara, ver se lavou direito, e também, pentear os cabelos. E o meu tio, irmão de minha mãe, quando vinha de viagem, fazia a barba ali, sob o escrutínio do meu olhar curioso que alternava entre a imagem no espelho e a mão dele, a correr o barbeador pelo rosto. Sozinho no banheiro, eu subia num banquinho e fazia caretas para o espelho, conversava com aquele menino, interrogava-o... "o que vai ser de você, quando crescer?... será que fará a barba neste lavatório também?".
Lá fora da casa, o mundo grande, abrindo-se, abrindo-se aos meus olhos sempre gulosos. Nas tardes ensolaradas, eu corria as datas vazias, os quintais de muros caídos, com seus mistérios de arvoredos... cadeiras quebradas, sapatos semi-enterrados, pedaços de louça... um mundo de desutilidades! E eu juntava trecos - carretéis vazios para os carrinhos, vidros de forma interessante, fios de cobre para vender, garrafas...
Ah, mas a minha alegria eram os cacos de espelho! Huumm... eu limpava na ponta da camisa, olhava a minha cara, sorria para o meu reflexo sem moldura vermelha, fractal. E depois ficava "fazendo ar" na cara dos outros, projetando longe o reflexo do sol nas casas com suas janelas abertas... Escondido, eu fazia o reflexo entrar pelas janelas e passear nas paredes alheias, iluminava os retratos na parede, e divertia-me com as caras surpresas que procuravam o moleque malfeitor - o susto das pessoas ao darem com o reflexo do "meu" espelho passeando nas paredes de suas casas! Em tempo: eu nunca fui pego!
E o mundo que então se abria, agora, depois da carreira longa, se fecha, tenho as pernas cansadas, muito cansadas. Sim, nesses fractais da minha memória, fecha-se o [meu] mundo... cacos de espelho, por que me voltam à memória? Quantas lembranças ainda hei de purgar, quantas catarses ainda hei de escrever? E para quê, se o vazio de antes de mim deve ser igual ao vazio de depois? E os meus olhos, aonde vão, aonde... Um muro, um mosaico de cacos de espelhos, devolvendo-me recortes do mundo que eu nunca apreendi, recortes iluminados por algum menino malfeitor, a se vingar de mim?
Cacos de espelho... quanto viajastes até chegar aqui, quanto! E aquele "lavatório"... está em órbita no mundo, no mundo que me viaja por dentro... será? Esse é o único mundo que há, de outros, nem sei... nada é certo fora dele, e nem tampouco, dentro dele – nada sei, sei nada!
[Penas do Desterro, 02 de fevereiro de 2010]
Alguém me diga: por que, ainda hoje, os espelhos de pobre têm moldurinhas de madeira vermelha? Por que não pretas, verdes, cinza...?