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Nasci abençoado pela imprevisibilidade e pela estatística

 
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Gê Muniz

Nasci abençoado pela imprevisibilidade e pela estatística

Fui um filho planejado. O único dos três irmãos com este predicado. E isso não é pouco. Pergunte aos seus pais se você foi ou não planejado. Talvez a resposta possa lhe fazer alguma diferença. No meu caso, minha própria mãe, solenemente, assim me disse. Estávamos conversando numa tarde ensolarada de uns bons anos atrás, ou, talvez, numa noite chuvosa... A única frase que lembro claramente desta conversa perdida nas calendas gregas do tempo foi essa do planejamento: meus genitores em “conluio de amor" haviam me engendrado. Bonita frase para definir o sexo com fins de procriação. Homem e mulher indo para a cama com o firme propósito de gerar um filhote.

Portanto, eu era muito esperado e desejado e, segundo fontes fidedignas, meu pai não se continha de alegria em ver seu varão macho babando, mamando ou chorando. Engraçado que percebo a importância desse detalhe da minha criação somente agora. No real instante daquela famosa prosa, de fato, apenas devolvi um sorriso amarelo para minha mãe. Por algum motivo que me foge à compreensão, silenciei-me e envergonhei-me. Quem sabe a imaginação dela trepando para me ter, sabe-se lá.

Em alguns momentos da vida, geralmente difíceis, paramos para perguntarmo-nos o porquê de nascermos, qual nosso objetivo cósmico em viver aqui e outras sacrossantas e filosóficas questões sobre o fato de existirmos. E estava ali um verdadeiro motivo, um fluxo de acontecimentos relevantes, independentes de minha vontade, que resultaram nessa minha excêntrica e estranha pessoa.

Àquela época, já não era mais criança é certo, tampouco homem formado, porque isso lá eu nunca fui. O fato é que me sinto verdadeiramente importante por conta desta revelação. Por fim, apareceu algum sentido à minha estada nesta Terra. Afinal, dois seres humanos queriam-me por aqui! Simples. Foram para a cama, determinados, mancomunados, cheios de tesão (ou não) com o firme propósito de me fabricar. Eu, euzinho aqui, não era fruto de acidente... Definitivamente não me resumia a um espermatozóide ensandecido escapado de uma camisinha furada. Existia um plano meticulosamente arquitetado com relação à minha pessoa. Velhos maquiavélicos.

Quais intenções passariam pela mente desse casal? Minha mãe queria-me oficial da marinha. Achava que eu ficaria lindo uniformizado de branco. Ela tinha uma mania e tanto para glamorizar e vida. A realidade, para ela, tinha endereço fixo em Hollywood. Já meu pai almejava que eu o ajudasse nos negócios. Pois não é que, não plenamente contentes em me premeditarem, ainda teciam, cada um conforme os seus próprios sonhos, uma vida maravilhosa para mim, à minha revelia? Infinitos, os delírios dessa dupla. O que eles não esperavam é que na teoria a prática fosse outra.

Uma regra básica para quem planeja é saber que todo projeto tem seus furos, suas imprevisões. O problema é que as pessoas costumam não pensar num plano B. Sabe, algo do tipo “e se não der para fazer assim?” Ah, então a gente “faz assado”. O famoso plano B!

Tanto sacrifício de minha mãe... Ministrava aulas em escola primária, de manhã e à tarde. Sem plano alternativo, arranjou-se como a vida deixava. Casou-se novamente poucos anos depois que meu pai morreu para dar segurança aos filhos ainda pequenos e, na visão dela, desamparados. Quem sabe o fez na esperança de executar objetivos que foram interrompidos pela morte de meu pai, ou seja, insistir naquelas idéias que um dia ela chamara de Plano A, subtítulo: "E foram felizes para sempre". Mas casar-se de novo era só um remendo para um ideal que não tinha como ser revivido. Aquele, o original, estava morto e enterrado. Acho que ela sabia disso. Duvido que tenha se unido ao meu padrasto novamente por um amor profundo.

E meu pai? Ah, Esse era sério e animado com a família que construira. Meteu-se de corpo e alma no trabalho. Era um furacão. Nervoso, agitado e com úlcera, mesmo sendo homem novo, ia de cá para lá em busca da sua felicidade e da família. Mas... com que sentido real? Para que correr tanto? Mas pai... aonde estava guardado o plano “B”?

Ele acabou morrendo dois meses depois de meu nascimento num acidente de avião idiota quando ia cuidar de negócios no Rio de Janeiro. Sendo assim, não o conheci... Ele me amava, sem dúvida, afinal, me desejou ardentemente. E eu? O que poderia sentir por ele? Apenas essa estranha emoção que tenho quando pego nas mãos a sua foto 3X4 e observo o rosto moreno e de olhos verdes daquele bigodudo que me obrou (dê a “obrar” o sentido que quiser).

Muitos dos que o conheciam dizem que ele seria um homem de extremo sucesso. Era líquido e certo que ficaria rico, afirmam seus velhos amigos, uns poucos que ainda sobraram vivos. O que sei apenas é que, antes de morrer, tinha uma fábrica de gaiolas. Certamente não me cheira ser um negócio, assim, promissor, algo que faça alguém imaginar que seu pai seria um Bill Gates, do tipo: - Olha, lá vai o Germano, o “Imperador das Gaiolas”! Multimilionário! – Ao contrário. Tudo me remete apenas à mera titica de galinha...

Falemos sério: Como alguém que morre de desastre de avião, repito, “desastre de avião”, poderia ficar rico se esse evento não ocorresse? Seria incompatível, captou o paradoxo? A sorte sempre deve bater com o tino. Portanto, meu pai foi premiado, sim: com o infortúnio. O certo mesmo é que nasci duplamente abençoado - pela imprevisibilidade e pela estatística.
 
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GeMuniz
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 27/10/2010 19:20  Atualizado: 27/10/2010 19:20
 Re: Nasci abençoado pela imprevisibilidade e pela estatís...
O que dizer? já havia lido no site... sim é um abençoado e nos abençoa com a tua amizade, gosto muito de ti, beijo enorme querido amigo.

Um texto que sempre me emociona.


Enviado por Tópico
Kolthar
Publicado: 27/10/2010 19:22  Atualizado: 27/10/2010 19:22
Super Participativo
Usuário desde: 25/08/2010
Localidade: Lisboa
Mensagens: 153
 Re: Nasci abençoado pela imprevisibilidade e pela estatís...
Simplesmente um magnifico texto emocional.

Um beijo amigo


Enviado por Tópico
Conceição Bernardino
Publicado: 27/10/2010 19:48  Atualizado: 27/10/2010 19:48
Usuário desde: 22/08/2009
Localidade: Porto
Mensagens: 3357
 Re: Nasci abençoado pela imprevisibilidade e pela estatís...
olá Gê,

eu não fui desejada, vim ao acaso, pai nunca tive um a sério mas mãe, poeta não poderia ter melhor, sinto-me a mulher mais sortuda do mundo...isto para te dizer que o teu texto está cru e real...magnifico.

beijo


Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 27/10/2010 21:05  Atualizado: 27/10/2010 21:05
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: Nasci abençoado pela imprevisibilidade e pela estatís...
Sabes Poeta?
Entre a sorte e o azar, nunca saberemos o que é melhor e pior.
Eu? não fui desejada, por uma simples razão.
A pobreza na altura era mais do que muita e havendo já um filho, o meu irmão mais velho, mais uma boca para alimentar seria indesejável. Não sei explicar-te o que senti no dia em que me contaram isso. Ficamos como que vazios. os milhares de poemas que já escrevi até hoje, muitos referem esse facto.
Hoje convenço-me que todos nós temos uma missão para cumprir e que o mais importante é de facto dar aos outros o que porventura jamais recebemos.
A tua crónica está excepcional e olha... pôs-me a divagar. Desculpa!
Beijo
Vóny Ferreira



Enviado por Tópico
Avozita
Publicado: 27/10/2010 21:54  Atualizado: 27/10/2010 22:29
Colaborador
Usuário desde: 08/07/2009
Localidade: Casal de Cambra - Lisboa
Mensagens: 4549
 Re: Nasci abençoado pela imprevisibilidade e pela estatís...
Esta tua magnifica prosa, fez-me pensar,
em algo que nem sempre quero recordar.
Nasci precisamente 9 mesess depois dos meus pais se casarem. Numa vila onde escasseava
o trabalho do meu pai, calceteiro. Não fui programada nem desejada. Fui criada e amada.
Mas não fui desejada!... Antes nascesse um saco de lacraus...

Gosto de te ler Gê
Beijinhos meu amigo
Antonieta


Enviado por Tópico
Runa
Publicado: 27/10/2010 22:20  Atualizado: 27/10/2010 22:20
Colaborador
Usuário desde: 24/04/2010
Localidade: Santo Antonio Cavaleiros
Mensagens: 1174
 Re: Nasci abençoado pela imprevisibilidade e pela estatís...
Cada ser humano é um pequeno livro, com uma história única e diferente de todas as outras. Uma história original, formada por um encadeado de acontecimentos e imprevistos que se vão sucedendo e moldando o carácter do personagem principal (cada de um de nós), numa caminhada, página após página, até ao ultimo capitulo.
Muito boa a forma directa e despretensiosa como abordas o tema. Sem complexos nem rendilhados. Fazendo-nos reflectir e procurar, aqui e ali, pontos comuns com a nossa própria história. Só por este texto, já valeu o ter cá vindo hoje.

Grande abraço


Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 27/10/2010 22:29  Atualizado: 27/10/2010 22:29
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Usuário desde: 01/09/2008
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Mensagens: 669
 Re: Nasci abençoado pela imprevisibilidade e pela estatís...
Profundas e belas considerações por essa coisa fantástica que é a imprevisibilidade no que respeita à vida em todos os seus aspectos. Cada um de nós é fruto de um mundo de imponderáveis, de imprevistos, não têm conta os cruzamentos onde se determina o nosso rumo. No que toca ao nascimento você foi mesmo privilegiado na medida em foi programado. Só não foi ao perder tão cedo o pai que, decerto ardentemente, o desejou.
Felicito-o pelo feliz texto.

Um abraço
Antonius


Enviado por Tópico
carolcarolina
Publicado: 28/10/2010 01:07  Atualizado: 28/10/2010 01:07
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Usuário desde: 24/01/2010
Localidade: RS/Brasil
Mensagens: 9299
 Re: Nasci abençoado pela imprevisibilidade e pela estatís...
Amigo Poeta
Gê!

Puxa que história poeta!
Deixou-me livre para dar a obra o sentido que eu quisesse. Então poeta, o seu pai obrou uma pessoa, que é amiga de todos, que gosta de escrever poemas, textos muito engraçados de vez em quando e que outras pessoas assim como eu admiram muito.
Os meninos são fãs do poeta e eu também.
Bjo no coração
♫Carol


Enviado por Tópico
MelMartins
Publicado: 28/10/2010 02:43  Atualizado: 28/10/2010 02:44
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Usuário desde: 02/06/2010
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Mensagens: 941
 Re: Nasci abençoado pela imprevisibilidade e pela estatís...P/Gê
Querido amigo GÊ, venho aqui parabenizá-lo pelo excelente texto que acabei de ler, linda a história da sua vida, que bela descrição, com sensibilidade e um pouco de humor à mistura...

Sinceramente gostei muito, da história pena o seu pai ter falecido tão jovem, mas deixou como herança os genes de um bom homem...

ABRAÇO POETA AMADO E QUERIDO!

Alice Barros