"Considero a vida uma estalagem
onde tenho que me demorar
até que chegue a diligência do abismo.
Não sei onde me levará, porque não sei nada.
Poderia considerar esta estalagem uma prisão,
porque estou compelido a aguardar nela;
poderia considerá-la um lugar de sociáveis,
porque aqui me encontro com outros.
Não sou, porém, nem impaciente nem comum.
Deixo ao que são os que se fecham no quarto,
deitados moles na cama onde esperam sem sono;
deixo ao que fazem os que conversam nas salas,
de onde as músicas e as vozes chegam cômodas até
mim.
Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos
nas cores e nos sons da paisagem,
e canto lento, para mim só,
vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a
diligência.
Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro.
Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder,
relido um dia por outros, entretê-los
também na passagem, será bem. Se não o lerem,
nem se entretiverem, será bem também".
Fernando Pessoa, poeta português, In: O livro do desassossego.