Esta é a história de um rato-marrom fêmea que vivia feliz no seu reino roedor com uma colónia fiel e subserviente de calungas. Todos os dias pela alvorada, o rato-marrom fêmea soprava a corneta de estimação e era ver o imediato amontoar de calungas à porta do refeitório, a fim de servir um bolorento e esburacado queijo a sua alteza roedora-mor. Enquanto o rato-marrom fêmea se deleitava, as calungas atropelavam-se devido à pobre visão que possuem para morder as minúsculas migalhas caídas às patas de sua alteza roedora-mor. Após o repasto, e inchada de fazer inveja, o rato marrom fêmea divulgava o plano de tarefas elaborado durante o profícuo sono que as suas fiéis calungas teriam de executar, de forma cabal, de modo a alastrar os corredores subterrâneos do reino roedor.
A Portugal - Jorge de Sena
A Portugal
Esta é a ditosa pátria minha amada.
Não, nem é ditosa porque o não merece,
nem minha amada, porque é só madrasta
nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de ter nascido nela.
Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
Quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela
Saudosamente nela,
Mas amigos são por serem meus amigos
e mais nada.
Torpe dejecto de romano império,
Babugem de invasões,
Salsujem porca de esgoto atlântico,
Irrisória face de lama, de cobiça e de vileza,
De mesquinhez, de fátua ignorância.
Terra de escravos, de cú para o ar,
Ouvindo ranger no nevoeiro a nau do Encoberto.
Terra de funcionários e de prostitutas,
Devotos todos do Milagre,
Castos nas horas vagas, de doença oculta.
Terra de heróis a peso de ouro e sangue,
E santos com balcão de secos e molhados,
No fundo da virtude.
Terra triste à luz do Sol caiada,
Arrebicada, pulha,
Cheia de afáveis para os estrangeiros,
Que deixam moedas e transportam pulgas
(Oh!, pulgas lusitanas!) pela Europa.
Terra de monumentos
em que o povo assina a merda
o seu anonimato.
Terra-museu em que se vive ainda
com porcos pela rua em casas celtiberas.
Terra de poetas tão sentimentais
Que o cheiro de um sovaco os põe em transe.
Terra de pedras esburgadas,
Secas como esses sentimentos
De oito séculos de roubos e patrões,
Barões ou condes.
Oh! Terra de ninguém, ninguém, ninguém!
Eu te pertenço.
És cabra! És badalhoca!
És mais que cachorra pelo cio!
És peste e fome, e guerra e dor de coração!
Eu te pertenço!
Mas seres minha, não!
Jorge de Sena - A Portugal, Quarenta Anos de Servidão, Lisboa 1979