A tarde é suave naquele beco do centro, pois mais parece que todo o desespero ao redor se intimida e murcha frente à música transbordante nas janelas do Villa. Lembro-me que era intervalo entre as aulas de sax, e eu, jogado num banco, contava as bolas pretas do chão emborrachado. Mas o ócio por lá não deixa impune ao seu praticante, dito que, mesmo sem notar, a gente mergulha cada vez mais a fundo nos sons, a gente vai tomando aquela cacofonia instrumental como uma parte importante de si. É uma experiência intensa e, o que mais importa, é ímpar. Alguns sons despertam frescos e ingênuos, dos quais fui cúmplice nas fracassadas investidas ao sax tenor, enquanto outros, de tão maduros se tornam constrangedores ao sujeito que ainda pouco ou nada sabe de música.
Voltando, então, ao intervalo, o fato que houve ali foi nada espantoso para o ambiente em que se encerra: a vez quando vi e ouvi, quase sem direito à repetição, as aulas-ensaio da oboísta, cujo nome ou quaisquer outras informações eu nunca pude saber. Só sei que a moça, somada ao seu instrumento, compunha uma obra de rara beleza, e ambas as partes se abortariam no vago da outra. Eu a contemplava... Era pictoricamente linda, não nego, lembrava algo pintado por Vermeer num instante de inspiração maior, coisa que, se me jurassem verdadeira, eu jamais arrogaria duvidar. Porém não só desta beleza sobrevive a arte, e sim de uma outra mais viva, triste-sincera, trágico-profunda, em que a oboísta parecia investida da cabeça aos pés. Era um estímulo inequívoco à audição e à visão, e digo até obsceno, pois os sentidos são cúmplices em suas escolhas, e não havia como proibir o tato, o olfato e o paladar de reclamarem seu quinhão em algo tão sublime. Confesso que a realidade das minhas lembranças é duvidosa, já que desfila fantasias com que os poetas cobrem a vida concreta. Mas quem pode falar com razão em realidade além do sonho? A mim parece mesmo que a existência, nua de qualquer adorno, é somente o vácuo da biologia, lugar onde este texto não tem graça ou nexo algum. Por isso eu peço “licença poética” às idealizações.
Por fim, me lembro que vi aquela instrumentista mais algumas vezes, embora não muitas. E mais algumas vezes deleitei sua música como um voyeur, um hedonista diante de um prazer proibitivo e desconhecido. E justo aí sobressalta o paradoxo das contemplações: eu jamais saberei se, no caso de conhecê-la e trazê-la para a imundice do material, de humanizá-la, se a sua imagem seria igualmente perturbadora e atraente, e se os poucos minutos das poucas vezes em que a vi tocar seriam, assim mesmo, tão magnéticos. Porque há vezes em que o mistério é o que move e choca, e, não sendo tudo, é pelo menos o maior pedaço. Antes que me apontem, eu digo que não, que nunca tive uma paixão pela oboísta, ao menos como chamam por aí em seu sentido mais pleno de preconceitos e distorções... Ao menos não por ela enquanto ser específico. Ela era apenas uma parte de algumas tardes, e talvez eu quisesse mesmo me apaixonar por tudo o que pudesse, por cada pequena expressão da alma manifesta, por cada tentativa de conhecer um pouco mais o amor e seus ícones, e as pessoas que pelo mundo passam. Acho que eu quis desesperadamente tê-la com seu oboé, e dela saber tudo, e cercá-la o quanto eu pudesse. Mas não há tempo para todas as contemplações, descobertas e paixões, e o que realmente me intriga é a semântica deste verbo “ter”, do qual ainda não pude decifrar a forma, mesmo que com ele eu insistentemente me depare. É, eu sei: a única verdade é que não posso procurar verdades nos olhos e nos ensaios da oboísta...