Gê Muniz
O MENINO QUE DISCURSAVA
Não sabia bem o que dizer, nem porque dizer. Simplesmente dizia. E como era inesquecível aquela fala. E como as pessoas ao seu redor admiravam-se com a perfeição devastadora de suas palavras. Difícil de acreditar: aquele toquinho de gente, tão precoce – pouco mais de seis anos - e aquele extraordinário dom: a aptidão inexplicável e sublime para comunicar-se com gigantesca arte retórica. Não era só isso. Sua voz parecia influenciar os ouvintes, semelhante à notória fábula O Flautista Mágico dos Irmãos Grimm. Pois hipnotizava através de idéias concisas e sofisticadas, suspendendo a platéia do chão ao ocasionar reações e emoções inusuais ao seu bel prazer, em todos ao mesmo tempo e igualmente. Demonstrava absoluto domínio e compreensão a respeito do psiquismo humano. Talvez ele não pensasse em exercer domínio algum. Talvez ele não conhecesse nada sobre o psiquismo humano. Porém, efetivamente ele dominava e compreendia. Sua arte discursiva não tinha o ranço dos pregadores ou dos políticos que adoram influenciar o populacho, porém, a única forma em que liberava plenamente a capacidade de expressão era quando falava à várias pessoas simultaneamente. Quando isso ocorria era como se uma vigorosa força telúrica tomasse sua boca e falasse nele, embora isso nada tivesse de incorporação ou espiritismo como já conjeturavam os crentes e fanáticos nesse assunto. Nada disso. Quando discursava, era bem ele.
Quanto mais expressava seus pensamentos, quão mais costurava suas avaliações, ainda mais tinha a dizer o menino e sempre de forma mais adequada, envolvente. Suas primeiras conferências despontaram apenas o cume do iceberg da manifestação de suas capacidades. Todos os dias – incluindo os domingos - um novo cabedal importante de aforismos esclarecedores escapava-lhe da boca assim, assim, de supetão, com puro e genial improviso. Sem dúvida o garoto possuía um extraordinário dom: talvez ele fosse um vigoroso canal aberto na natureza cujo destino era o de propagar no formato de palavras os axiomas mais recônditos e insolúveis desta Terra. Ninguém, jamais, o saberia. Nem haveria como.
Veio gente de todos os cantos do país para conhecê-lo. Eram doutores pesquisadores, membros das academias de letras, políticos renomados, religiosos dos mais variados credos, filósofos, antropólogos, literatos, linguistas, enfim, a nata da "intelligentsia" do país. Todos rendiam-se, invariavelmente boquiabertos, estupefatos, àquelas idéias enérgicas e inéditas, à autoridade e controle com que o garoto dissuadia a todos, inclusive eles próprios. Uma inveja abstrata instalara-se neles, mas o fascínio em que estavam enredados era maior do que esses açulamentos mesquinhos. Aquelas audições sem dúvida inebriavam e eles, definitivamente, não queriam ir embora. Recidivamente voltavam para abeberarem-se dos próximos e surpreendentes discursos. Até o comércio de rua foi beneficiado por conta do fluxo extra de pessoas que começou a consumir produtos de todos os gêneros por aquelas bandas.
Para o próprio garoto suas manifestações eram naturais e indeclináveis. Não havia afetação, presunção ou imodéstia em sua conduta. Encarava aquela missão sublime do mesmo jeito informal e displicente com que jogava, vibrando os dedinhos ágeis, seu videogame. Aproveitando os bons ventos trazidos por este fenômeno infantil, a sociedade local progredia muito bem. Os diretores da escola em que ele estudava já quebravam a cabeça para instituir métodos para educar melhor aquele imenso talento sem perdê-lo para outra instituição educacional mais abalizada (e angariar os benefícios da propaganda que sua presença traria para o nome da escola); o prefeito arquitetava durante as noites quentes uma maneira de fazer com que o mundo todo conhecesse aquele prodígio (claro, na intenção de granjear para si vantagens e privilégios políticos) e os pais... ah... esses não cabiam em si de tão orgulhosos. Sonhavam um futuro refulgente para o filho, e, por que não dizer, imaginando uma velhice tranqüila e abastada para eles mesmos graças ao que o menino generosamente poderia proporcionar-lhes através de seus dotes na oratória.
Ninguém poderia contar, nem professores, diretor, prefeito ou quaisquer dos seus ouvintes, quanto mais os seus pais, que um futuro bem diferente o aguardava. Esse improvável destino começou a delinear-se de forma explícita depois do famoso discurso que o menino proferiu no dia em que completou sete anos, como que simbolizando seu ingresso numa idade cabalística. Fora uma dissertação vibrante, emocionada, como se verá em seguida, que ele articulara coadjuvado por sua voz agudíssima de criança miúda, agarrado à uma das colunas do coreto da cidade como ele próprio fora um marujo amotinado segurando o mastro de um veleiro que cruza um oceano rodeado por ventos.
O tal discurso tratava de uma interpretação do Livro do Gênesis que trazia novíssima e definitiva luz à sua hermética compreensão. Costumeiramente ele não falava de assuntos religiosos mas, nesse dia em específico, ele conseguiu, através de sua explanação, tal um passe de mágica e sem deixar margem para sequer uma dúvida, dissipar todas as lacunas, todas as questões obscuras sobre a criação do universo, do mundo e do homem. O mais pitoresco é que o conteúdo da explanação não se investia, de forma alguma, de altercações religiosas. Nem científicas, artísticas ou filosóficas, tampouco. Quem o ouviu não sentiu-se enlevado, ou tomado de sentimentos altruísticos ou de auto-descobrimento, não obteve uma visão definitiva de Deus, de passado, de futuro ou coisa que o valha. Era algo muito, mas muito superior a isso... A praça foi, pouco a pouco, invadida de um silêncio visceral tal era grau de atenção que dispensavam-lhe diante daqueles esclarecimentos.
A figura miúda do menino contrastava com sua voz monotônica e empastada, ausente do mínimo entrave ou engasgo. Não se percebia qualquer forma de hesitação no emprego acertado dos verbos, substantivos e adjetivos. Não se notava pedantismo ou preciosismo na arquitetura de sua linguagem. Assim, o conjunto das idéias expostas patenteava-se ainda mais bonito, beirando o campo da poesia. O semblante das pessoas, conforme as frases pairavam como ventos oníricos, tornava-se sintônico à voz dele: rostos inexpressivos e exatos a ponto de, ao final, todos apresentarem-se iguais, tal fosse uma absurda multidão de empastados gêmeos idênticos...
Terminada a exegese debaixo de uma mudez dilacerante, ninguém desejou regressar as vozes. Cada qual preferiu manter-se quieto. A multidão dispersou-se, parva, acompanhada da mesma expressão facial anulada que a caracterizou durante os vários minutos de audição. Apenas dirigiu-se bovinamente para casa. Os que eram de fora montaram em seus carros ainda meio atordoados e retornaram para as suas respectivas cidades, não sem antes provocarem alguns pequenos acidentes naquelas ruas calmas. E essa foi a derradeira oportunidade em que todos os presentes dignaram-se a parar as suas vidas para escutar as falas do menino. Eles tinham plena consciência de que isso não lhes seria mais possível, nem recomendável. Afinal de contas, quem, mas quem neste mundo poderia encarar outra vez uma manifestação de cabal, límpida, insofismável e insuportável "verdade"? O guri era dinamite pura.
Com passar do tempo, a esmagadora maioria dos que presenciaram o memorável discurso dos sete anos teve que seguir a vida e esqueceu-se e desentendeu-se, por conveniência, do que ouviu. Foi bem melhor assim. Quanto ao menino, confirmou sua fama de precoce: madura e sabiamente declinou definitivamente dos exercícios discursivos e retirou-se para não mais palavrear nem em festas de aniversários de crianças. Quando adulto, tornou-se um ótimo professor da língua portuguesa, o que, diante das circunstâncias, ficou de bom tamanho. Porém, para quem souber ver; quiser ver; poderá notar em seus olhos um brilho aprisionado, misterioso e congelado em forma de cristais em meio às suas íris esverdeadas; isso, desde o seu sétimo aniversário.