Textos : 

palavras desamparadas

 


não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


acordei sobressaltado – puxei-me para cima dos quadris e sentei-me no topo da cama. virei-me para sul por causa do mau olhado. o norte traz sempre ventos frios e húmidos – há uma janela quase quadrada que me apaga a solidão. é lá que ponho os olhos a sossegar – lá fora. nos socalcos do olhar. mesmo ao pé do beiral. já há gente a correr atrás da vida – pego num dente de alho e penduro-o ao pescoço. sinto que posso precisar da protecção contra uns demónios conhecidos. não tenho medo das suas crueldades. mas aborrecem-me com merdas que muitas vezes não entendo – adivinho que há dentro de mim umas cogitações que querem ganhar forma num espaço que está entre o que estou a pensar e o que estou a ver – estas cogitações. são coisas que ondulam nesta minha cabeça meia louca. meia torta. meia inclinada para o lado da loucura – são ideias que mais parecem barcos à deriva no meio do oceano. subindo e descendo a ondulação sempre ao correr de um vento que ninguém sabe onde nasceu – neste mar sem fim. há peixes que se alimentam deste emaranhado de ideias. nadam como se tudo em que penso fossem águas calmas. águas tranquilas. águas sem predadores ou mesmo sem leões marinhos – nem sei se são estúpidos ou arrogantes. talvez as duas coisas – habituaram-se a uns refúgios seguros que tenho por detrás dos olhos – sempre que os fecho. nada mais é capaz de perigar dentro deste oceano de pensamentos loucos ainda desconhecidos – tem profundezas que desconheço completamente – é nestas alturas que sinto a morte nos dentes. fico com medo. vejo tanta coisa esquisita. às vezes até tem nomes que chamam por mim. ruídos que já me foram familiares – um dia. até ouvi a campainha da minha escola. aquela que me fazia sair a correr para a procura da vida que imaginava cheia de coisas belas – nestas memórias meias loucas. permanece a imagem de um sargaceiro vestido de fato amarelo. trauteia umas quantas canções de sereias que já morreram – eram do tempo do ulisses. meias mulheres meias feiticeiras das profundezas dos mares. faziam sorrir os homens destemidos. mesmo aqueles que nunca foram embalados enquanto amamentados por peitos secos de amor – coitado! esqueceu-se que está com água até à cintura e a maré continua a subir – e as algas que em tempos eram abundantes são agora meia dúzia de ideias desprendidas de um cérebro em decomposição – talvez seja melhor içar a bandeira vermelha. talvez assim volte a subir às dunas de areia onde costuma descansar o corpo coberto de sal – também ele quando fecha os olhos consegue ver as gaivotas a bicar as incongruências da imaginação – um dia morrem os dois. e nem as ideias com guelras sobreviverão. morrerão sentadas no areal da praia a chorar a morte do corpo.
 
Autor
sampaiorego
 
Texto
Data
Leituras
1279
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
2 pontos
2
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Epifania
Publicado: 11/10/2010 14:14  Atualizado: 11/10/2010 14:15
Super Participativo
Usuário desde: 02/07/2010
Localidade:
Mensagens: 179
 Re: palavras desamparadas
- Se a morte fosse só uma vaga maré, então cingir-se-iam todas as criaturas ao modo como ela se movimenta, até atingir as correntes baixas. Mas o corpo, esse coitado já nem sabe de caricaturas a cingir os ossos sobressaídos das ancas. Quer agora descansar sobre o oceano que o viu nascer antes do tempo.

- Essas ideias, serem barcos à deriva no meio do oceano, só podem mesmo ser por causa dos ventos do Norte. Eles são tão fortes que à noite dá vontade mesmo de colocar uns dentes de alho pendurados na porta. Uma noite sem dormir, por causa dessas nortadas loucas, abri as duas janelas de par em par para ele passar livremente. Obstáculos são assim um modo de os enfurecer. Por isso deixá-los passar em linha recta, é o melhor. Devem ter atingido o topo da montanha estatelando-se na paisagem verde, ainda em estado de cogitação.
Um texto que mais parece um pensamento em alta frequência sobre o verdadeiro estado de coisas em que depositamos a mente e o corpo não aguenta.


Beijo
E
Abraço


Epifania & Ainafipe