Sou aquele que reconsidera o poema dentro de um ovo de Colombo
Retira a excalibur da movediça engrenagem social
Reitera dividir o menino com a espada de aço de Salomão
Enforca Egas Moniz no poial de um castelo de Toledo em ruínas
Assassina o Mestre de Aviz e explode a abóbada dos Jerónimos
Entorta as linhas paralelas das ferrovias de Dona Maria
Sou aquele que precisa de oxigénio na fantasia
Sou aquele que conta os átomos que sobram do caos social
Almoça cadáveres em Hiroshima vê Chaplin em Hollywood
Envenena Hitler num bunker de fungos em Auschwitz
Oferece a Hirohito o mais incompleto Atlas do sistema solar
Acende velas brancas ao capitalismo no altar da falta de senso
E ainda encontra tempo para se redimir de si por extenso
Bebo uma cerveja com Freud num café familiar de província
Declamo os Lusíadas do cimo da estátua de Álvaro de Campos
Aos cegos que procuram um cravo afogado em punhais
Nos mares mais que traídos dos nossos luso-ideais
Comigo o braço forte de um Viriato livre e independente
Que me encha a alma e regenere o sangue dorido de todos os vícios
Com que a sociedade impregnou a juventude
Para não tivesse olhos nem boca nem ouvidos nem opinião
Sou um livro hebraico escrito num Avéstico Nordestino actual
Contando mil aventuras em histórias quadriculadas
De um Jesus sepultado algures não sabem bem onde
Crucificado no Monte Sinai pelas mãos de um Moisés incógnito
Que apenas escreve penas nos Livros Sagrados
Que enchem de ouros e pedrarias os eleitos divinos e afins
Enquanto os crentes martelam a fome no Muro das Lamentações
Bebendo à pressa as sopas frias de uma canja de galinha de ironia
Sou aquele que guarda na algibeira a covardia do dia
“Antes o despotismo que a razão” brada a batina branca romana
“Ámen” bradam as togas pretas de doutorados poderes iluministas
Abrem-se as mãos e as leis ao paradoxo do poder dos egoístas
Abrem-se as pernas ao remanescer ejaculativo da miséria
Somos as prostitutas da história Judas e Madalena
Ou a cruz de ouro de um religioso Mussolini ou Salazar
Que contam os abortos escondidos nas toalhas das irmãs
Que caridosamente penitenciam Ave Marias e esconjuros
Ou apregoam a pés juntos a serenidade de um mandador
Eleito por deus para o caso de existirem ainda dúvidas
Sou o apedrejado na mansão dos loucos e profetas
Que lambem subsídios como os cães as mãos dos donos
Escrevem letrados tratados os Bozo Torresmo Croquete
Da nova sociedade de novelas futebóis e concursos retrete
Editam livros sem ideias vendem retratos de tão conhecidos
Líderes de uma civilização de perfeitos vencidos
Consomem o luxo no bucho do lixo que apenas traduz
A glória inglória dos perfis que atabalhoam a história
Sem carreiro caminha-se como se as mãos não fossem mais
Que extensões de um vazio que corrói a alma e vomita as entranhas
No cimo de uma nuvem cria-se um paraíso de sorrisos e chapéus
Delicadezas vis nas sevícias que ocultam as práticas mais abjectas
Que são pisar o caído para ter o gozo pleno da autoridade
Despir o nu para promover a moda e a vaidade
Querendo mais e sempre mais e mais que mais
Ainda que tudo isso seja uma cibernética falsidade
Sei lá se a minha nudez tem etiqueta ou cartão de crédito válido
Sei lá se o meu olhar reflecte um Ferrari ou um Lamborghini
Apenas sei que a minha casa alberga as piscinas e os palácios
Que o ouro saído das unhas dos trabalhadores consegue comprar
Tem razão Marx tem razão Engels tem razão Vladimir
Mas a ganância ultrapassa a vicissitude da vã filosofia
Para quem defende a liberdade de não saber o que é ser livre
Estou aqui num geométrico ângulo de sindromas e cacos
Enchendo o peito de ar sibilando com as veias nas folhas das árvores
À procura da trela perdida de um animal abandonado no lodo
Estou aqui diante de vós como Cristo sem religião
A apregoar o amor entre os homens… Ou não?!
Sou homossexual pelo direito adquirido pela usucapião de mim
Solidário com as flores corrompidas pelos exércitos que passaram
Ou pelos palcos dos falsos discursos de retóricos governantes
Estendo a rodilha da homofobia na janela do dilema
De uma Creta inventada para a minha alegria passar
Eu sou o vento do norte que recusa ficar
Não tenho pressa nem tempo nesta modernice dramática
De esquecer a semântica da metáfora e engolir a morfologia sintáxica
De escolher palavras que não entendo para dizer o que não sei se quero
Convencido de que os outros talvez descubram no palavrão a razão
De uma raiva que explode vulcanicamente nos meus nervos
De uma atroz insatisfação e raiva e ódio e tédio contra mim
Sou o fracasso escolar dos que não tem dinheiro para comprar livros
Sou a rouquidão da alma das crianças violadas pela alta sociedade
Sou o comprimido que mata de silêncio todas as Madeleines do mundo
O terramoto no Haiti as inundações em Moçambique o temporal na Madeira
A guerra na Faixa de Gaza a intransigência de Espanha os Países Bascos
Eu sou os pregos de todas as cruzes os gritos dos generais os fuzis
As lágrimas de Gioconda no auto-retrato de Da Vinci uma gôndola
Um moliceiro um rabelo uma traineira resgata às ondas da minha dor
Quando vejo o mundo cruzar as indiferentes esquinas da praça da solidão
E me deixa prostrado numa parede fria de uma casa em ruínas
Sou o copo de vinho de um alcoólico a heroína de um toxicodependente
A lotaria de um compulsivo jogador social habituado ao jogo natural
Numa máquina do tempo num salão de jogos e etiqueta
Sou a gravidez da menina violada entre gritos e violência
A lei católica que permite o nascer da indesejada criança
O machão marido que por direito canónico espanca a mulher sua serva
Condenada a servi-lo até que a eternidade consuma ambas as almas
Iluminadas pela violenta e harmoniosa paz do senhor
Sou o canhão de Luther King as experiências de Pavlov
Pasteur que procura saber porque não morrem os pobres das mesmas penas
Que os ricos que lhe pagam para que lhes cure infecções com bolor
O ridículo de todas estas cenas banais anormais e estúpidas
Sou o Coliseu de Roma o Terreiro de Diana
A Catedral de Alá o barroco cristão Nefertiti
Um pouco do perfume de uma rosa estrangulada entre as pedras
Um raio de luz
Na revolução da vida!
08 Outubro 2010
ANTÓNIOCASADO