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O beijo perdido

 
Corpo curvado e olhos postos no chão, era assim a figura dilacerada daquele homem, que diariamente, no momento em que os dois ponteiros do relógio se juntavam às 12 horas, entrava pela enfermaria.
Ao longo de duas semanas, dia após dia, os passos tornavam-se mais pesados, arrastando uma amargura infinita que teimava não desaparecer.
Alberto, seu nome era Alberto.
Ao entrar, os olhos tristes procuravam a presença do corpo de Manuela, a sua princesa de há 35 anos, que se mantinha ali agora, inerte, passiva, naquele sono profundo, sabe-se lá com a alma perdida em qualquer ponto ensombrado do cérebro.
Abeirava-se dela com cuidado, o cuidado de quem não quer sobressaltar aquele que tranquilamente dorme, afagava-lhe o rosto e beijava-lhe a testa. “ Boa noite, meu amor!”
Era esta a frase que marcava o início e o fim daqueles encontros diários, carregados de sofrimento e fé, de esperanças perdidas e renascidas, de desalentos e recordações.
Por entre sorrisos e lágrimas, desfolhava na memória o livro dos dois, revivendo pequenos e grandes momentos das suas vidas que haviam ficado gravados em páginas eternas. Páginas de um casamento feliz que cresceu em afecto e respeito.
Mulher bonita e carinhosa, Manuela já era florista na praça, quando se conheceram e ele, agora reformado da função publica, era na altura um empregado de restaurante, mesmo ali ao lado da Ribeira.
Foi bonito o namoro deles, timidamente assumido e depois, gostosamente saboreado com os ímpetos próprios da paixão. O casamento, marcado às pressas porque a gravidez já não podia ser disfarçada, foi bonito também. Assim como foi bonita a vida deles, marcada por muito sacrifício conjunto, mas também muita determinação e força. Apoiavam-se mutuamente. Ela mais condescendente e sempre conciliadora, ele por vezes irascível e sempre bastante orgulhoso.
Tiveram alguns desentendimentos, pequenos arrufos. Coisas que a convivência diária provoca e que naturalmente, também resolve. Nada que tivesse abalado em algum momento aquela união terna e doce onde geraram e criaram três filhos.
Manuela fazia questão de nunca deixar que a zanga perdurasse para além do dia e à noite procurava sempre de uma forma ou de outra a reconciliação. Dizia ela que o sono era como uma viagem e por isso gostava de se despedir com um beijo sereno e de adormecer em paz. Mas o orgulho de Alberto, algumas vezes era mais forte e teimava em adormecer de costas voltadas, retomando o sorriso apenas pela manhã.
Naquela tarde de sábado, e por um motivo que nem Alberto já se recordava bem, tinham-se desentendido. Manuela estava menos tolerante, aquela dor de cabeça constante e a latejar, tirou-lhe o discernimento e a zanga ficou no meio dos dois, congelando os afectos.
Quando o sol veio render a fria madrugada de domingo e Alberto desenhou um sorriso para oferecer à mulher como se fosse um malmequer silvestre, sentiu nela uma respiração irregular e ruidosa, virou-se na cama e olhou para o seu rosto, pálido, inexpressivo.
“ Manuela, meu amor, acorda!! “
Manuela ficara presa na sua viagem, algures entre o sonho e a vida, no labirinto das conexões nervosas não irrigadas, do seu cérebro.
Desde há duas semanas que permanecia assim, sem regresso.
Alberto inconformado, esperava poder em qualquer momento recuperar aquela noite, em que se deitaram juntos pela última vez, para agora sim, se despedirem em paz, como ela tanto gostava e darem o beijo perdido de boas noites!

Maria João Martins
Julho 2010
 
Autor
MjoãoMartins
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 06/10/2010 01:59  Atualizado: 06/10/2010 01:59
 Re: O beijo perdido
Seu texto é belissimo dá até um filme estava a observar entrei no site somente para comentar seu texto. Parabéns!