não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
amarrei na armadura que guardo por detrás dos dentes. tirei os olhos fora. despenteei o cabelo e berrei. berrei tão alto que todo o meu interior abalou – já não sou o mesmo homem desde o dia em que vi partir a ambição de ser um pedaço de ferro temperado. esta chuva fria que sempre faz no mês de setembro amolece-me – merda de berro. silencioso para todos os ouvidos que carrego comigo – berrei para dentro. os olhos saíram para um mundo que eu não gosto. cavalgaram por entre umas flores tingidas de verde – em tempos. pelas manhãs. eram uma tela branca em busca de um farol que me alumiasse o dia. o negro nascia pelo acordar da noite. salpicando o luar dos sonhos adiados – mandei as mãos trémulas buscá-los. sei que apesar de tudo. são capazes de os convencer a mergulhar novamente nestas órbitas feitas de osso de dinossauro – encontrei-os numa poça de suor de um cavalo-marinho que andava a lavrar um campo de papoilas. tinha um assobio na boca para chamar a atenção de todas as aves que por ali passavam – havia um castanheiro plantado ao alto por um moleiro que tinha um periquito para levar o pão que as mós de uma vida de burro tinham moído – era a imagem perfeita do quadro de van gogh. não há esperança – este homem também é feito de falta de esperança. apenas o coração ainda bate em dias mudos. bate devagar. afinal a vida corre depressa demais – no topo da árvore. do lado direito. vivem duas gaivotas – do lado esquerdo um melro de bico amarelo – ao centro um abutre chegado do corno de áfrica. estava de férias. trazia ainda como merenda um pedaço de uma gazela que já se tinha cansado de correr – o melro. servia apenas para assustar um espantalho que vivia encostado a uma espiga vermelha. desde o dia que tentaram semear esperança entre giestas – o abutre. é o único que sabe sempre onde a carne vai cair sem vida. mantém a ordem na desordem – paciente. vê nas nuvens o destino dos que caminham sem raciocínio. vive da morte. de qualquer morte. até da morte da esperança – a gaivota de asas redondas. gastas pela erosão do vento norte. já não voa. observa enquanto lê um livro do jorge reis-sá. um que fala da morte em dezembro – a outra gaivota. sem asas. louca por querer alcançar de uma só vez o que estava para lá da linha que um dia tinha imaginado. atirou-se abaixo do castanheiro que já não dava fruto há mais de um século – pobre gaivota. caiu em cima da única formiga que todos os dias gritava a dizer que o destino dela tinha que ser cumprido – por muito curto que o voo fosse. a morte tinha que ser engolida pelo único ar que ainda lhe restava nos pulmões – a queda é apenas uma consequência de um dia ter imaginado que nasceu com asas – o castanheiro cresceu demais – talvez o corte pela metade. dezembro é já aí.