É meu lugar
meu céu
meu travesseiro
meus insultos
sou quem sou porque os outros são
há uma história em cada amanhecer
e em cada transparência do crepúsculo
estive doze anos sem virar esta página
esperando sua letra suas estampas
imaginando coisas que não diz
mas que eram igualmente certas
sem virar esta página
ninguém pode ser alguém
pode somar paisagens
espigões torrentes
multidões fronteiras
pode colecionar amores e sabores
aplausos e vaias
manjares e esmolas
os rumos os atalhos
as diferenças as indiferenças
a solidariedade e o exorcismo
as ofertas saborosas os escândalos
os dedos que assinalam e os braços abertos
as decepções e as recompensas
as recusas e as convocatórias
e no entanto é verdade
sem virar esta página,
ninguém pode ser alguém.
Mario Benedetti (1920-2009), poeta uruguaio, profundo conhecedor da América Latina e de sua literatura. Dramaturgo, poeta, ensaista e novelista, Mario Benedetti logrou boa parte de sua popularidade com seus contos: Esta manhã (1949), A última viagem (1951), Montevideanos (1959), A morte e suas surpresas (1968), Geografias (1984), e outros - nos quais captou aguda e sutilmente os pequenos fatos da vida cotidiana do homem comum de seu pais.
Este poema faz parte Do livro "Perguntas ao acaso", com tradução de Julio Luís Gehlen.