Alguns diriam que foi um milagre, mas uma mente maçadoramente pragmática de adulto compreenderá que foi apenas uma intervenção cirúrgica. Bem sucedida! No entanto, a mãe da menina gostava, lá no fundo, de acreditar no milagre. E quem podia censurá-la?
A verdade é que a menina abriu os olhos e, pela primeira vez nos seus ainda poucos anos de vida, conseguia ver! De início, deixou-a um pouco confusa, pois nada em sua memória se assemelhava a luz ou cor, mas, em breve, a sua jovem e receptiva mente assimilou o significado da visão. Cedo começou a relacionar as imagens que agora lhe eram apresentadas com as formas que já conhecia pelo tacto. O brinquedo que a mãe lhe oferecera, por exemplo, tinha a forma de um losângulo. Presa a ele, estava uma cauda com laços de várias cores, quase todas as que acabava de conhecer.
Assim que pôde sair do hospital, a menina apressou-se a satisfazer dois desejos. Um, claro está, era experimentar o seu novo brinquedo. Outro, mais antigo, que só agora podia satisfazer era poder ver o Sol. Sempre tinha ouvido falar nele! Do seu poder, da sua luz, o calor que já conhecia, mas nunca vira a sua fonte...
E foi num prado mesmo ao pé de casa que a menina satisfez ambos os desejos. Enquanto soltava o brinquedo, com laços às cores, voando com o vento, a menina mirou o céu... e lá estava ele! O Sol! O seu Sol! Estava fascinada! Era ainda mais belo do que imaginara! A sua luz intensa ofuscava-a, de vez em quando tinha que desviar o olhar (seria dos seus ainda frágeis olhos, em recuperação... ou seria mesmo assim?), mas não resistia a voltar a fitá-lo, aquele belo e poderoso astro, que finalmente podia ver, ali, tão próximo que quase podia tocá-lo! Nem se lembrou mais do brinquedo em forma de losângulo com laços às cores, que entretanto pousara a seus pés.
Mas a hora chegou em que o Sol cruzou o horizonte e começou a desaparecer. Logo agora que estava ainda mais belo, cercado de cores tão vivas! "Não", gritou a menina, "O Sol! O MEU SOL! Está a ir embora! Vai deixar-me! Porquê?!"
Nada a fazer... O Sol acabava mesmo por desaparecer. Logo agora que ela podia vê-lo! Não era justo! Desolada, a menina sentou-se e os seus recém-curados olhos não conseguiram reter as lágrimas.
Algumas vezes, a menina limpava os olhos e fitava o céu, na esperança de voltar a ver o Sol, mas assim que percebia que ele tinha realmente desaparecido, as lágrimas voltavam.
"Porquê?", perguntava a menina. "Estive o dia todo com ele, a admirá-lo! Esperei tanto tempo para poder vê-lo! E ele deixou-me! Não é justo!"
Mas, a certa altura, ao limpar as lágrimas, a menina percebeu, olhando para o céu, que, ainda que não visse o Sol, algo ainda brilhava. Com menos intensidade... ou, pelo menos, assim parecia... Percebeu também que, embora aquelas coisas parecessem muito mais pequenas que o Sol, eram muito numerosas.
Então, percebeu o que essas coisas eram. Já lhe tinham falado nelas... Estrelas! Claro! Só podiam ser as estrelas!
Embora ainda ressentida com a perda do seu Sol, a menina lembrou-se do que tinha aprendido sobre as estrelas. Lembrou-se que, na verdade, o Sol não era maior que a maioria delas, algumas até eram maiores, e o seu brilho não era menos intenso.
"Claro!", dizia a menina, sorrindo, embora os seus olhos ainda estivessem humedecidos, "Como fui injusta para convosco, estrelas! Estava tão ofuscada com o brilho do Sol que nem vos podia ver! Mas vocês estavam sempre aí, mesmo quando o Sol não me deixava ver-vos! Vocês são tão grandes e brilhantes como ele, mesmo que ele pareça muito maior e mais luminoso. E vocês estão sempre aí, nunca me abandonaram, como o Sol fez!"
E deixou-se ficar, comtemplando as suas amigas estrelas. Escolheu como suas preferidas um grupo delas que se parecia com o seu novo brinquedo, formando um losângulo seguido de uma cauda. Teria talvez passado lá a noite, se a mãe, preocupada, não fosse buscá-la ao prado!
"Ah, estás aí! Estava preocupada! Não achas que são horas de ir para casa?"
"Desculpa, mãe!"
A mãe envolveu-a e pegou-a com um braço e, com a outra mão, pegou no brinquedo, arrastando atrás de si os laços às cores.
"Sabes, mãe", disse a menina, "eu já não preciso do Sol! Eu tenho as minhas estrelas. Ele não é melhor que elas..."
"Quê?! Ai, miúda, as coisa que tu dizes!" O rosto da mãe mudou de expressão e sorriu. "Mas olha... estou mesmo muito contente por estares curada!"
Sim, era um milagre... finalmente, a menina conseguia ver.
(Escrito em fins de 2003; Para Débora Rebelo)