A ausência dá cabo dela.
Todos os dias nulo. Todas as noites a dar ao manifesto pelas vielas, ao pé dos bares, a entrar nos carros e ir com eles por meia hora, mas só por meia hora que depois há o regresso ao mesmo ponto de onde partiu para aviar mais um cliente que está com os copos e vem cheio de cio.
A Patrícia (nome fictício), anda a cursar humanidades a trezentos quilómetros de casa, lá para os lados do Marão, e tem obrigatoriamente que se desemerdar porque o dinheiro que os velhos lhe dão não dá nem sequer para as fotocópias. De dia estuda para vir a ser professora de português e à noite, quando o nevoeiro se instala na pequena cidade, aí vai ela de saia justa, salto alto e bastante maquilhada para lançar o isco à rapaziada nova que quer ter histórias para contar no dia seguinte.
Por noite são quatro ou cinco rapidinhas que a fazem trazer por casa cento e tais euros, depende do menu. De manhã cobre o rosto com uma espessa nívea para disfarçar alguma da sua amargura e puxar ao de cima o brio que se esconde no fundo dos olhos. E isso faz com que a sua beleza passe bem despercebida pelos colegas que se mostram indiferentes à sua pessoa. A Patrícia tira boas notas nos testes e está nas melhores da turma e daqui a nada acaba o curso e começa a leccionar.
Vai a casa de mês a mês e há quem já lhe trate por doutora. Um destes dias conheceu um rapaz simples, formado ele também em língua portuguesa e discutiam bastante sobre os grandes autores clássicos, o Eça, o Gil Vicente, o Fernando Pessoa, etc. Esta química fez saltar o amor num estalar de dedos e os dias passaram a ser vistos pelos dois, de mãos dadas a ouvir os sonhos malucos um do outro. Quiseram casar dali a dois meses, pois a febre do desejo era algo que avançava por quimeras adentro.
E casaram-se, num dia santo às duas da tarde. A felicidade jamais iria entornar o seu caldo visto serem cuidadosos e compreensivos no amor. A Patrícia ganhou novos ares e lecciona para vinte alunos, está feliz da vida por saber que depois das aulas o seu mais-que-tudo a espera no carro com mais uma flor. Mas o segredo nela apavora-a, fica triste em ocasiões que não devia. Só um «deixa para lá» faz o seu marido aceitar o silêncio á pergunta «que tens, amor?».
Os dias assim, nestes altos e baixos, onde a emoção oscila consoante as suas lembranças do que foi, do que é. Farta de esconder o passado, achou que ele devia saber de tudo antes que viesse por aí um filho. E assim foi, num jantar romântico, um vinho caro, umas velas, uns incensos afrodisíacos, lá para o final da noite pôs à baila a conversa sobre as coisas que ele devia saber e não sabia.
- João, tenho que te dizer.
O João olhou-a com a mesma doçura de sempre, embora aquele tom de dizer trouxesse tanto de vida como de morte.
- Quando eu ainda estudava…
As reticências, a falha na voz, puseram os olhos e as orelhas em bico do João que, enquanto isso, dava mais um trago no vinho caro. A Patrícia, por sua vez, calculava a melhor forma de dar a triste notícia ao seu bem-amado que por certo iria querer abalar e, a quatro tempos, a coragem fez-se ouvir assim:
- Dizia eu… quando estudava…para suportar as despesas… tive de me vender!
Um silêncio fez-se ouvir. O João acabou com o vinho caro que tinha no copo de pé alto, torceu um pouco o pescoço mas sem dar indicações daquilo que pensava. Até que veio a resposta decisiva:
- Ó querida, e tu, como é que achas que eu fiz o curso?
Um barulho fez-se silêncio. E viveram felizes para sempre!